Fatos que devem ser rememorados no contexto das eleições de 2022
No período das campanhas eleitorais no Brasil, das últimas eleições de 2018, aos cargos de presidente, deputado e senador, mergulhamos em um cenário dantesco[1], de esvaziamento do debate político. Muitos candidatos, principalmente o atual presidente, investiram fortemente em um sistema de disseminação massiva, através das redes sociais e disparos pelo WhatsApp, de notícias falsas e difamatórias acerca dos candidatos da oposição, a partir de distorção dos fatos, como meio de construção de narrativas favoráveis às suas próprias campanhas.
No contexto de fácil proliferação de informações, especialmente quando são falsas, a preocupação com a construção de políticas públicas e debates sobre propostas de governo, permitindo a participação da população, foi colocada à parte em prol de desconstruir e depreciar partidos e candidatos, principalmente aqueles identificados com as pautas políticas da esquerda.
Patrícia Campos Mello, repórter e jornalista, em seu livro A Máquina do Ódio: notas de uma repórter sobre fake news e violência digital, analisa minuciosamente este cenário e o processo de manipulação da opinião pública e divulgação de fake news em meio à estruturação de governos antidemocráticos em diversos países, que anunciam a mídia como inimiga do Estado e da própria população.
A jornalista explora esta conjuntura de forma a explicar a ascensão de governos que se estruturam desencadeando processos de desinformação da população e de difamação de personalidades e entidades identificadas como ameaças ao domínio virtual destes líderes tecnopopulistas[2] e de seus partidos, a partir da grande manipulação dos conteúdos. Tal panorama impede que cidadãos distinguam o que possa ser verdadeiro e o que é falso, imperando a flexibilidade dos fatos e a divulgação de conteúdos de caráter misógino, homofóbico e racista. Esse cenário revela a operação do maquinário de fake news para a manutenção do poder, característica marcante da era da pós-verdade.
O conceito de pós-verdade é fundamental para se compreender a lógica de narrativas que distorcem a realidade por meio de fake news. Na obra Adeus à Verdade, o filósofo italiano Gianni Vattimo analisa o processo de construção da pós-verdade e reflete sobre sua função para justificar ações e manter poderes. A pós-verdade consiste em uma específica narrativa ideológica, ardilosamente construída e arquitetada, visando justificar determinada atividade ou ação. Após o fato consumado, a verdade histórica objetiva deixa de ser relevante, o que resta é apenas trabalhar com as consequências da ação implementada. A pós-verdade opera, em uma perspectiva pragmática e utilitarista, a partir da relação entre meios e fins, o que interessa é o resultado final[3]. Ela pode ser articulada de maneira mais sofisticada, com narrativas e argumentos sofisticados, mas também pode ser construída de maneira mais grosseira, como as fake news que pavimentaram a ascensão ao poder do governo Bolsonaro.
A força da infame eleição de Bolsonaro e de seus filhos provém de circunstâncias adversas, nas quais os discursos de ódio contra as minorias sociais são assumidos abertamente e legitimados na internet pelo próprio presidente e sua “legião” de apoiadores, os quais, favorecidos financeiramente por grandes empresários, investiram na estruturação de redes para a divulgação de notícias e informações, a partir de grande inversão e distorção ideológica. A principal ferramenta para a concretização deste processo foi, fundamentalmente, os disparos realizados através do WhatsApp.
Em verdadeira marcha de demonização da esquerda, sob o véu do discurso ideológico de Bolsonaro acerca da ameaça comunista, da ameaça da ideologia de gênero e da ameaça do marxismo cultural, concretizou-se, no Brasil, um esquema de campanha marcado pela ilegalidade, uma vez que foi financiado por contribuições não declaradas ao TSE e configurou-se claramente negativo e ofensivo, frente ataque deliberado aos adversários políticos. A corrupção que transpassou a campanha de Bolsonaro é evidente, concretizando-se por meio de caixa dois, contribuições ilegais e compra de bancos de dados com números de celular e CPF dos eleitores.
Analisando a ascensão de Bolsonaro e sua trupe ao governo, Patrícia Campos Mello verifica o mesmo movimento em outros países, como Índia, Hungria e Turquia, nos quais, assim como no Brasil, delineiam-se governos autoritários e populistas que buscam destruir tudo o que se apresenta como fonte de conhecimento e informação verídica, desmontando as instituições democráticas e, principalmente, a mídia crítica. Há a construção de governos que enfatizam as concepções previamente dadas, cuja função é a construção de narrativas favoráveis ao domínio, desvalorizando o conhecimento autêntico e a transparência ativa. Por meio das redes sociais, estrutura-se uma verdadeira rede de desinformação como forma de manipulação da opinião pública.
São nestes termos que vemos aparecer a censura e a ditadura virtual, cuja principal ferramenta é o famoso gabinete do ódio, que operado pela família Bolsonaro realiza o linchamento virtual de qualquer pessoa que se oponha à atuação do governo e também busca camuflar todos os ataques contra o Estado democrático e a irresponsabilidade do presidente e de seus ministros.
Diante da pintura deste quadro sombrio e desastroso da eleição de Bolsonaro e de sua atuação na presidência, vinculada a posturas preconceituosas e criminosas, resta questionarmos de que forma e por quais razões permitimos o colapso da democracia e de suas instituições. O contexto social da subida de Bolsonaro, marcado pela ânsia dos cidadãos por mudanças a qualquer custo, mostrava-se propício para a identificação de um inimigo comum, responsável por todos os problemas econômicos e sociais do país.
Este inimigo é o Partido dos Trabalhadores. Bolsonaro com sua manifestação anti-petista e pró-mercado, contra movimentos sociais de inclusão pautados em raça, gênero e classe, conseguiu reger a classe dos grandes empresários e a classe média, orientadas pela simplificação da legislação trabalhista, pela desregulamentação, pelas privatizações, pelo racismo, misoginia e homofobia. Não surpreende que o eleitor do atual governo configure a imagem do homem branco de classe abastada que se diz vítima da sociedade, a qual, ao seu ver, protege as minorias.
Este monstro que surge na contemporaneidade, simbolizando a face da intolerância e das diversas violências, se volta contra a mídia crítica. O ambiente virtual revela insuficiente tutela e controle jurídicos, abrindo margem para que os indivíduos que compartilham de visões racistas, misóginas e homofóbicas tenham maior espaço para exprimir suas opiniões sem o receio de repreensão. Neste sentido, as redes e o WhatsApp se tornam armas para o desenvolvimento das campanhas eleitorais e da aprovação do governo, que a partir da obtenção de bancos de dados direcionam mensagens específicas a determinados grupos, manipulam o fluxo de informações e enviam notícias falsas.
A estruturação das milícias digitais, que minam a legitimidade das instituições e cooperam para a inversão dos fatos, foi a saída encontrada pelos governos autoritários para a manutenção do controle sobre as informações que circulam em meio a sociedade. Imperando censura e perseguições políticas a quem pense diferente. Busca-se convencer os eleitores de que as denúncias de corrupção e da atuação inadequada do governo consistem em ataques da oposição.
A rede de fake news é a grande produtora de inverdades e distorções, depreciando pessoas e coletivos, num processo de rebaixamento e aniquilamento do outro, violando-se a liberdade, a autonomia e a dignidade. A geração dessas fake news alimenta os movimentos de massa, que são fascistas e dão legitimidade ao atual governo. Através das mentiras, criam-se inimigos da nação, da família e da pátria, configurando-se a necessidade de combatê-los através de sua negação pública e permanente.
[1] Dantesco: adjetivo relativo a Dante Alighieri, poeta italiano renascentista. O termo denota cenário de grande horror, tenebroso.
[2] Tecnopopulista: termo cunhado pelo jornalista francês Da Empoli, que refere-se a práticas políticas populista no cenário digital. O tecnopopulismo é marcado pela utilização da capacidade de mobilização da internet, por lideranças populistas conservadoras, para disseminar ideias ligadas ao direcionamento da nação, que suscitam sentimentos negativos da população associados à cultura do ódio.
[3] Sobre a dinâmica da pós-verdade, Vattimo exemplifica a guerra do Golfo, impetrada pelo presidente estadunidense George Bush contra o governo de Saddam Hussein. A justificativa para a guerra girava em torno da narrativa de que o governo iraquiano de Saddam Hussein detinha um arsenal bélico de armas de destruição em massa. Após a derrota do Iraque e a ocupação liderada pelos EUA nenhuma arma de destruição em massa foi encontrada, mas aí a guerra já estava dada e o Iraque derrotado. As armas de destruição em massa não importavam mais, pois estavam no contexto da pós-verdade: a guerra e a derrota do Iraque passaram a ser a verdade consumada.
Referências bibliográficas
MELLO, Patrícia Campos. A máquina do ódio: notas de uma repórter sobre fake news e violência digital. Companhia das Letras, 2020.
VATTIMO, Gianni. Adeus à verdade. Editora Vozes Limitada, 2018.
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