A pós-verdade e a ascensão tecnopopulista
- Esther Martins de Carvalho Oliveira
- 1 de out. de 2022
- 6 min de leitura
Fatos que devem ser rememorados no contexto das eleições de 2022
No período das campanhas eleitorais no Brasil, das últimas eleições de 2018, aos cargos de presidente, deputado e senador, mergulhamos em um cenário dantesco[1], de esvaziamento do debate político. Muitos candidatos, principalmente o atual presidente, investiram fortemente em um sistema de disseminação massiva, através das redes sociais e disparos pelo WhatsApp, de notícias falsas e difamatórias acerca dos candidatos da oposição, a partir de distorção dos fatos, como meio de construção de narrativas favoráveis às suas próprias campanhas.
No contexto de fácil proliferação de informações, especialmente quando são falsas, a preocupação com a construção de políticas públicas e debates sobre propostas de governo, permitindo a participação da população, foi colocada à parte em prol de desconstruir e depreciar partidos e candidatos, principalmente aqueles identificados com as pautas políticas da esquerda.

Patrícia Campos Mello, repórter e jornalista, em seu livro A Máquina do Ódio: notas de uma repórter sobre fake news e violência digital, analisa minuciosamente este cenário e o processo de manipulação da opinião pública e divulgação de fake news em meio à estruturação de governos antidemocráticos em diversos países, que anunciam a mídia como inimiga do Estado e da própria população.
A jornalista explora esta conjuntura de forma a explicar a ascensão de governos que se estruturam desencadeando processos de desinformação da população e de difamação de personalidades e entidades identificadas como ameaças ao domínio virtual destes líderes tecnopopulistas[2] e de seus partidos, a partir da grande manipulação dos conteúdos. Tal panorama impede que cidadãos distinguam o que possa ser verdadeiro e o que é falso, imperando a flexibilidade dos fatos e a divulgação de conteúdos de caráter misógino, homofóbico e racista. Esse cenário revela a operação do maquinário de fake news para a manutenção do poder, característica marcante da era da pós-verdade.
O conceito de pós-verdade é fundamental para se compreender a lógica de narrativas que distorcem a realidade por meio de fake news. Na obra Adeus à Verdade, o filósofo italiano Gianni Vattimo analisa o processo de construção da pós-verdade e reflete sobre sua função para justificar ações e manter poderes. A pós-verdade consiste em uma específica narrativa ideológica, ardilosamente construída e arquitetada, visando justificar determinada atividade ou ação. Após o fato consumado, a verdade histórica objetiva deixa de ser relevante, o que resta é apenas trabalhar com as consequências da ação implementada. A pós-verdade opera, em uma perspectiva pragmática e utilitarista, a partir da relação entre meios e fins, o que interessa é o resultado final[3]. Ela pode ser articulada de maneira mais sofisticada, com narrativas e argumentos sofisticados, mas também pode ser construída de maneira mais grosseira, como as fake news que pavimentaram a ascensão ao poder do governo Bolsonaro.

A força da infame eleição de Bolsonaro e de seus filhos provém de circunstâncias adversas, nas quais os discursos de ódio contra as minorias sociais são assumidos abertamente e legitimados na internet pelo próprio presidente e sua “legião” de apoiadores, os quais, favorecidos financeiramente por grandes empresários, investiram na estruturação de redes para a divulgação de notícias e informações, a partir de grande inversão e distorção ideológica. A principal ferramenta para a concretização deste processo foi, fundamentalmente, os disparos realizados através do WhatsApp.

Em verdadeira marcha de demonização da esquerda, sob o véu do discurso ideológico de Bolsonaro acerca da ameaça comunista, da ameaça da ideologia de gênero e da ameaça do marxismo cultural, concretizou-se, no Brasil, um esquema de campanha marcado pela ilegalidade, uma vez que foi financiado por contribuições não declaradas ao TSE e configurou-se claramente negativo e ofensivo, frente ataque deliberado aos adversários políticos. A corrupção que transpassou a campanha de Bolsonaro é evidente, concretizando-se por meio de caixa dois, contribuições ilegais e compra de bancos de dados com números de celular e CPF dos eleitores.
Analisando a ascensão de Bolsonaro e sua trupe ao governo, Patrícia Campos Mello verifica o mesmo movimento em outros países, como Índia, Hungria e Turquia, nos quais, assim como no Brasil, delineiam-se governos autoritários e populistas que buscam destruir tudo o que se apresenta como fonte de conhecimento e informação verídica, desmontando as instituições democráticas e, principalmente, a mídia crítica. Há a construção de governos que enfatizam as concepções previamente dadas, cuja função é a construção de narrativas favoráveis ao domínio, desvalorizando o conhecimento autêntico e a transparência ativa. Por meio das redes sociais, estrutura-se uma verdadeira rede de desinformação como forma de manipulação da opinião pública.
São nestes termos que vemos aparecer a censura e a ditadura virtual, cuja principal ferramenta é o famoso gabinete do ódio, que operado pela família Bolsonaro realiza o linchamento virtual de qualquer pessoa que se oponha à atuação do governo e também busca camuflar todos os ataques contra o Estado democrático e a irresponsabilidade do presidente e de seus ministros.
Diante da pintura deste quadro sombrio e desastroso da eleição de Bolsonaro e de sua atuação na presidência, vinculada a posturas preconceituosas e criminosas, resta questionarmos de que forma e por quais razões permitimos o colapso da democracia e de suas instituições. O contexto social da subida de Bolsonaro, marcado pela ânsia dos cidadãos por mudanças a qualquer custo, mostrava-se propício para a identificação de um inimigo comum, responsável por todos os problemas econômicos e sociais do país.
Este inimigo é o Partido dos Trabalhadores. Bolsonaro com sua manifestação anti-petista e pró-mercado, contra movimentos sociais de inclusão pautados em raça, gênero e classe, conseguiu reger a classe dos grandes empresários e a classe média, orientadas pela simplificação da legislação trabalhista, pela desregulamentação, pelas privatizações, pelo racismo, misoginia e homofobia. Não surpreende que o eleitor do atual governo configure a imagem do homem branco de classe abastada que se diz vítima da sociedade, a qual, ao seu ver, protege as minorias.

Este monstro que surge na contemporaneidade, simbolizando a face da intolerância e das diversas violências, se volta contra a mídia crítica. O ambiente virtual revela insuficiente tutela e controle jurídicos, abrindo margem para que os indivíduos que compartilham de visões racistas, misóginas e homofóbicas tenham maior espaço para exprimir suas opiniões sem o receio de repreensão. Neste sentido, as redes e o WhatsApp se tornam armas para o desenvolvimento das campanhas eleitorais e da aprovação do governo, que a partir da obtenção de bancos de dados direcionam mensagens específicas a determinados grupos, manipulam o fluxo de informações e enviam notícias falsas.
A estruturação das milícias digitais, que minam a legitimidade das instituições e cooperam para a inversão dos fatos, foi a saída encontrada pelos governos autoritários para a manutenção do controle sobre as informações que circulam em meio a sociedade. Imperando censura e perseguições políticas a quem pense diferente. Busca-se convencer os eleitores de que as denúncias de corrupção e da atuação inadequada do governo consistem em ataques da oposição.
A rede de fake news é a grande produtora de inverdades e distorções, depreciando pessoas e coletivos, num processo de rebaixamento e aniquilamento do outro, violando-se a liberdade, a autonomia e a dignidade. A geração dessas fake news alimenta os movimentos de massa, que são fascistas e dão legitimidade ao atual governo. Através das mentiras, criam-se inimigos da nação, da família e da pátria, configurando-se a necessidade de combatê-los através de sua negação pública e permanente.
[1] Dantesco: adjetivo relativo a Dante Alighieri, poeta italiano renascentista. O termo denota cenário de grande horror, tenebroso.
[2] Tecnopopulista: termo cunhado pelo jornalista francês Da Empoli, que refere-se a práticas políticas populista no cenário digital. O tecnopopulismo é marcado pela utilização da capacidade de mobilização da internet, por lideranças populistas conservadoras, para disseminar ideias ligadas ao direcionamento da nação, que suscitam sentimentos negativos da população associados à cultura do ódio.
[3] Sobre a dinâmica da pós-verdade, Vattimo exemplifica a guerra do Golfo, impetrada pelo presidente estadunidense George Bush contra o governo de Saddam Hussein. A justificativa para a guerra girava em torno da narrativa de que o governo iraquiano de Saddam Hussein detinha um arsenal bélico de armas de destruição em massa. Após a derrota do Iraque e a ocupação liderada pelos EUA nenhuma arma de destruição em massa foi encontrada, mas aí a guerra já estava dada e o Iraque derrotado. As armas de destruição em massa não importavam mais, pois estavam no contexto da pós-verdade: a guerra e a derrota do Iraque passaram a ser a verdade consumada.
Referências bibliográficas
MELLO, Patrícia Campos. A máquina do ódio: notas de uma repórter sobre fake news e violência digital. Companhia das Letras, 2020.
VATTIMO, Gianni. Adeus à verdade. Editora Vozes Limitada, 2018.
Comments