O campo da História, enquanto disciplina, está em constante construção, renovando seus objetos de estudos, abordagens e narrativas. Infelizmente, a produção acadêmica está em descompasso com o conteúdo ensinado nas escolas, o que acaba por gerar falhas de conhecimento. Uma das áreas defasadas é a de História da África, que apenas recentemente passou a integrar o currículo básico de educação e, ainda assim, tem suas narrativas desatualizadas, responsáveis por uma má interpretação da história do continente. Sendo assim, o presente artigo busca trazer mais informações sobre o início da colonização na área Centro-ocidental do continente – mais precisamente, no Reino do Congo e Angola (região diferente da atual Angola) –, durante os séculos XVI e XVII, na tentativa de provar a complexidade das relações coloniais e explicitar as formas de resistência.
Primeiramente, é preciso entender o continente africano como uma pluralidade de reinos e culturas que, apesar de pouco estudados, já borbulhavam séculos antes da colonização europeia. Comércio, cultura, religião: tudo circulava pelas diversas áreas do continente. O interesse português em exercer influência no continente era justamente o controle das rotas de comércio, além da esperança de encontrar jazidas de metal, como o cobre abundante no Congo. A partir disso, analisaremos dois casos diferentes de colonização, cada qual com sua estratégia: no Reino do Congo, são bem recebidos e o cristianismo é a via de controle; na Angola, não são aceitos e a estratégia passa a ser militar. O que ambos casos possuem em comum é a resistência dos nativos e o desfecho desfavorável para Portugal.
No geral, houve boa recepção dos portugueses no Reino do Congo, que se estendeu para uma rápida adoção do catolicismo. Existem diversas explicações para tal: se investigarmos documentos portugueses, as justificativas são divinas e reforçam a completude da conversão; entretanto, se analisarmos por uma ótica mais ampla, que considere os interesses africanos, bem como sua visão de mundo, é possível captar as motivações políticas e cosmogônicas[1], que invalidam a versão portuguesa de uma conversão e submissão totais.
Quanto à boa recepção, a explicação mais provável reside na religião do povo. Ela se assenta na ideia de que o mundo possui duas partes separadas por uma extensão de água e simbolizadas por duas cores: o preto como a cor dos vivos e do mundo visível, e o branco como a cor dos antepassados, do invisível. Nesse sentido, os portugueses, ao chegarem pelo Atlântico, teriam sido vistos como homens vindos do mundo espiritual, sendo mensageiros dos antepassados e com autoridade para trazer renovações à religião tradicional.
A religião católica, por sua vez, adotada pelo mani kongo Nzinga a Nkuwu – chefe do reino que controlava as diversas províncias e batizado como D. João –, foi utilizada pelos nativos a seu favor, e não aceita de maneira passiva. A situação do Reino do Congo à época da chegada dos portugueses era de consolidação de um poder centralizado, processo que combinava novas estruturas políticas às antigas formas de legitimação do poder; ou seja, suas regras eram fluídas.
Com a morte precoce do convertido Nzinga a Nkuwu, houve disputa pela sucessão do trono. Nesse cenário em que a presença portuguesa já era uma realidade, a adoção do cristianismo significava ter o apoio de uma força externa e, consequentemente, vantagem no jogo político. É assim que D. Afonso, filho de D. João, venceu a disputa, legitimando seu poder tanto tradicionalmente pelo parentesco, quanto pelo novo elemento exterior – a religião portuguesa.
Apesar da conversão de D. Afonso, nem todos os elementos cristãos foram incorporados, apenas os que interessavam à manutenção do poder tradicional ou faziam algum sentido na cosmogonia conguesa. Dessa forma, é possível concluir que a conversão religiosa não foi completa, nem uma ruptura com a tradição. Pelo contrário, é utilizada para fortalecer o poder central local.
Diferente do Reino do Congo, a população da região da Angola não recebeu bem os portugueses, tampouco sua religião. Tal fato, somado ao fracasso da catequização no Congo, fez com que a estratégia fosse reformulada: os povos seriam submetidos pela força das armas e só depois convertidos. O cenário se transformou na chamada “guerra preta”, no interior de Luanda e nos vales dos rios Cuanza, Bengo e Dande. A tática era “decapitar os chefes que capturavam, queimar aldeias e quem nelas estivesse, carregar todos os víveres que encontravam pelo caminho e reduzir os sobreviventes à escravidão”[2]. Assim, muitos grupos preferiram aliar-se aos portugueses na guerra, para evitar um massacre, o que tornou o exército português negro em sua maioria.
Observa-se o lugar secundário da religião, utilizada só depois da dominação forçada, da qual os jesuítas[3] eram cúmplices. Outra singularidade é a não conversão dos líderes, já que não buscavam legitimação de sua autoridade, optando pela resistência. Um exemplo é a Rainha Njinga, principal nome da resistência, a qual nunca foi capturada, dadas suas habilidades políticas, guerreiras e até místicas. Converte-se apenas no final da vida, a fim de garantir a paz com os portugueses e selar acordos comerciais. Vê-se, afinal, que o catolicismo nunca foi realmente adotado na prática, nem pela elite política, nem pelos povos vassalos ou aliados, sendo utilizado como meio diplomático para garantir a paz e preservar os interesses das duas partes.
O resultado do final do século XVII para os portugueses é falho nas duas estratégias, uma vez que o Congo não se submeteu pela religião e a presença portuguesa militar no território de Angola nunca exterminou a resistência.
Diante dos casos do Congo e de Angola, nota-se a resistência africana diante da colonização portuguesa, que se apresentou de diversas formas. Portanto, é preciso sempre colocar em questão as narrativas que não consideram a visão dos nativos e seus interesses. A ideia criada pelos portugueses – e muito reforçada durante o imperialismo do século XIX – de que houve uma colonização plena, é falsa, pois todas as estratégias de colonização enfrentaram dura resistência dos povos nativos, que também buscaram maneiras para manter seus interesses nessa nova realidade.
[1] Cosmogonia: “Conjunto das teorias, doutrinas, princípios ou conhecimentos que se dedicam à explicação sobre origem do universo; cosmogênese.”
[2] SOUZA, Marina de Mello e. Além do visível: poder, catolicismo e comércio no Congo e em Angola (séculos XVI e XVII). P. 94
[3] padres e agentes católicos que iam às colônias com o objetivo de catequizar e converter os nativos; atuaram também no Brasil
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