QUEM É ANA CAROLINA?
ANA CAROLINA Teixeira Soares é o nome que a cineasta usou em suas primeiras produções cinematográficas, imersas no gênero documental [1] com o curta Lavra-dor e o longa-metragem Getúlio Vargas (1974). No entanto, foi com o filme Mar de rosas (1977), que Ana Carolina passou a explorar o lado ficcional do cinema, dando início ao que se transformaria em uma grandiosa trilogia com a elaboração dos filmes Das tripas coração (1982), que entregou a ela um troféu de melhor diretora em Gramado, e Sonho de valsa (1987). Mesmo após o sucesso de ambos os filmes, foi Mar de rosas que fixou a marca de Ana Carolina como uma importante cineasta brasileira, possuindo uma narrativa autoral e com traços não convencionais: a influência do surrealismo [2], a não linearidade [3], os personagens com traços que representavam toda uma geração inserida no espaço da Ditadura Civil-Militar, sofrendo repressão, e, também, o retrato de uma geração feminina que recebia influências do movimento feminista e tentava romper com as estruturas patriarcais [4], com o conceito de família tradicional [5] e com o papel atribuído às mulheres dentro desse sistema. Mesmo possuindo traços dos filmes comerciais, como a participação de atores consagrados, o que atraía o público geral, a cineasta também seduziu os críticos com sua forma pessoal de criar uma narrativa cinematográfica absoluta.
Um MAR DE ROSAS?
O longa-metragem da cineasta, disponível gratuitamente pela plataforma Spcine Play, da prefeitura de São Paulo, já apresenta uma marca da diretora em seu nome - a ironia. Ao contrário do que o nome “Mar de Rosas” propõe, o enredo do filme submete o espectador a uma narrativa extremamente caótica, com vários delírios dos personagens e um espaço cheio de histeria [6]. É em meio a esse contexto que Ana Carolina se apropria diversas vezes da fusão de piadas com um estado de horror e selvageria, elevando isso ao que seria um humor ácido, de difícil digestão, porém, possuindo dentro de si um caráter altamente poético. Contudo, não é apenas o nome do filme que cria uma antítese [7] mas, também, o nome de uma das personagens principais, Felicidade, cuja vida é guiada por uma melancolia causada pelas regras do amor romântico, a busca incessante de se sentir realizada dentro das relações familiares e a falta de liberdade que a personagem vive, sendo destruída pelo cenário do filme a cada tentativa de se libertar das amarras sociais. Desse modo, o trabalho com a linguagem explorada pela diretora carrega uma de suas grandes genialidades, uma vez que ela brinca com nomes e expressões populares ditas fora de contexto para causar um efeito de impacto e ironia.
Além do mais, Ana Carolina usou uma jovem atriz, Cristina Pereira, para atuar no papel de Betinha, filha de Felicidade, que possui um rosto angelical, mas subverte todos os comportamentos esperados de uma figura feminina. Ela parodia diversas vezes os personagens inseridos na narrativa e, ainda por cima, possui uma necessidade de destruir a própria mãe. Nesse contexto, Bernardet [8], em seu artigo original publicado no jornal Última Hora, sob o título “Mar de rosas, um filme duvidoso” (1978), questiona até que ponto a filha contesta o lugar da mãe apenas para reproduzir o mesmo comportamento.
Sendo assim, o fato da atriz não ser mais uma adolescente quando interpretou Betinha traduz uma escolha da diretora em reforçar a ideia de uma menina no corpo de uma mulher, com dificuldades de assumir sua identidade feminina. Em uma das cenas do filme, Felicidade expõe a situação de corpos femininos, onde eles estão e como se sentem, isso feito através de uma fala poética:
Felicidade - Para, eu não aguento mais, tô de saco cheio [...] Não aguento mais viver assim. Eu quero viver de algum outro jeito. Olha, até morrer vale, só que sem hora marcada. [...] procurando alguma forma de viver livre, de amar sem ser sufocada, sem sufocar, sem precisar envelhecer por horror de viver uma coisa que não tem nada a ver comigo, viver pelo simples prazer de viver, sem remorso, sem culpa, sem tempo. Queria sofrer menos, eu queria sofrer com menos amor.
O discurso poético de Felicidade foi, de fato, uma das poucas cenas em que a personagem conseguiu exprimir, através de palavras, seu estado emocional, seu anseio por liberdade e o desespero para sair da realidade trágica na qual está presa. Ela quase se sufocou para pedir por uma vida justa, onde tenha prazer e seja livre da culpa de não cumprir os desejos patriarcais que a aprisionam.
Após esse momento de drama e poesia, há uma referência à ditadura militar quanto à questão da censura e da falta de liberdade de expressão, principalmente do gênero feminino, quando Felicidade clama “Ó Senhor, afaste de mim esse cálice” [9].
Portanto, o filme é um mergulho no caos É revolucionário em termos do que quis representar no tempo em que foi exibido e, também, é complexo, podendo abranger uma diversidade de interpretações e representações. Sem dúvidas, Ana Carolina é uma das grandes cineastas do cinema brasileiros e, em Mar de rosas, apropriou-se da histeria para desviar as mulheres das condutas sociais patriarcais nas quais estão inseridas, concluindo um projeto estético e cinematográfico que desvia do clichê e atinge rupturas.
[1] gênero documental: é um gênero de filme que tem como premissa o compromisso com a exploração da realidade e a não-ficção, mesmo que em alguns casos dentro do cinema isso pode acabar ocorrendo.
[2] Surrealismo: movimento artístico do início do século 20 inserido no contexto das vanguardas européias, tem como características principais: não linearidade, libertação do impulso humano, resgate das emoções, ausência de lógica.
[3] não linearidade: quebra da perspectiva de tempo, ausentando-se de um começo/meio/fim.
[4] estruturas patriarcais: faz parte de uma estrutura que rege a sociedade por meio da desigualdade de gênero, oprimindo corpos femininos e colocando corpos masculinos como detentores de poder.
[5] família tradicional: dentro desse contexto, a família tradicional seria composta por pai, mãe e filhos, todos heterossexuais, cristãos e constituindo uma soberania do gênero masculino sobre o feminino.
[6] histeria: comportamento caracterizado por excessiva emotividade ou por um terror pânico.
[7] antítese: figura de linguagem que consiste na exposição de ideias opostas. Exemplo: alto/baixo; felicidade/tristeza.
[8] Bernardet: Jean-Claude Bernardet OMC (Charleroi, 2 de agosto de 1936) é um teórico de cinema, crítico cinematográfico, cineasta e escritor brasileiro.
[9] “Ó Senhor, afaste de mim esse cálice”: refere-se à música composta por Gilberto Gil e Chico Buarque durante o período da ditadura militar. A expressão serviu como uma crítica ao “cale-se”, referente à censura sofrida pelos artistas e movimentos contrários ao regime político antidemocrático.
Referências bibliográficas:
“ANA CAROLINA”. In: Enciclopédia Itaú Cultural de arte e cultura brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2017.
BERNARDET, Jean-Claude. Piranha do mar de rosas. São Paulo: Nobel, 1982.
MAR de Rosas. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2022. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra67293/mar-de-rosas. Acesso em: 03 de março de 2022. Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7
LUSVARGHI, Luiza. Mulheres atrás das câmeras: As cineastas brasileiras de 1930 a 2018. São Paulo: Estação Liberdade, 2019.
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