“Mas pode realmente haver paz plena para quem viver fora sempre remexer-se no poço da miséria? (...) Mas pode alguém enxergar o belo com olhos obtusos pela falta de quase tudo de que o humano carece?” (p.168)
Ora violento, ora poético, ora uma mistura de ambos, mas sempre visceral e intenso: é com essa sequência de adjetivos que apresento o livro Cidade de Deus, publicado em 1997 pelo escritor e antropólogo Paulo Lins. Talvez o título te recorde um dos mais famosos filmes brasileiros, do diretor Fernando Meirelles, indicado quatro vezes ao Oscar em 2004. O que nem todos sabem é que o longa é uma adaptação do romance, um calhamaço de quase 400 páginas retratando a favela carioca desde sua gênese até sua fragmentação em facções criminosas.
Creio que o mais interessante sobre a obra é o fato de haver sido escrita a partir de estudos antropológicos do autor dentro da Cidade de Deus, através do projeto “Crime e criminalidade nas classes populares” de Alba Zaluar. Além disso, Lins foi morador do bairro, o que nos traz uma visão de dentro. Como escreve Roberto Schwarz, o romance ficcionaliza a realidade “do ponto de vista de quem era objeto de estudo”, sendo o autor uma espécie de mediador intelectual que expõe a opressão vivida naquele território.
Estabelecido o contexto da escrita, falemos da narrativa. Diferente do filme, que constrói seu enredo a partir da história de Buscapé, Cidade de Deus possui um narrador em terceira pessoa, com perspectiva mais explícita e abrangente. Assim, narra a história da favela, de mesmo nome, no Rio de Janeiro, palco da ascensão da criminalidade, do tráfico e do crime organizado, três elementos que acabam por corresponder às três divisões da obra.
A comunidade começa a ser formada pela população removida de outras favelas da cidade, nos anos 1960. Na bela paisagem carioca, o samba e as brincadeiras infantis se misturam naturalmente aos diálogos que planejam assaltos e furtos, seguidos, por fim, das violentas cenas de crime e perseguição policial. Nota-se, desde o princípio, a relação tensa entre os moradores e a polícia, autorizada a utilizar o máximo de sua força. Apesar do peso do conteúdo, a escrita de Lins possui toques de poesia.
A segunda parte coloca em evidência o tráfico: o bom negócio já não é roubar e sim traficar. Zé Miúdo, um dos personagens principais, garante seu lugar como chefe das bocas matando seus inimigos em um dia, numa verdadeira chacina, mas parece, ao mesmo tempo, diminuir a violência dentro da comunidade, pois acabam os conflitos entre traficantes. Também, a violência policial se intensifica e os embates entre criminosos e policiais se tornam mais mortais, tanto pras essas personagens, quanto para os moradores que nada têm a ver com o mundo do crime. Cenas de violência são entrecortadas por episódios do cotidiano das personagens, dos bailes, das conversas descontraídas, dos amores e das traições.
A última parte, por sua vez, retrata uma favela dividida: intrigas pessoais se misturam às disputas do crime; dessa forma, facções armadas são concebidas. O resultado é uma guerra com soldados cada vez mais jovens e com menor expectativa de vida. O mundo do crime vira uma máquina de morte.
O microcosmo criado por Paulo Lins serve para entendermos o percurso do cidadão brasileiro de classe baixa no período entre a ditadura militar e os anos 1990. A partir do golpe de 1964, a população carente é abandonada pelo Estado - que passa a priorizar o desenvolvimento econômico sem o social - e depositada nas periferias das capitais. Com poucas oportunidades dignas no mercado de trabalho, envereda para o crime, que aparece como um dos únicos caminhos.
Por outro lado, no contexto histórico da ditadura, o Estado brasileiro passa a ser detentor de um poder de violência que não diminui com a abertura democrática - na verdade, diminui no seu tratamento com a elite, aumentando na periferia. A obra manifesta o pouco valor das vidas dos indivíduos do espaço periférico e como se dá sua relação com o único representante do Estado dentro da comunidade, a polícia. Não há perspectiva de conciliação entre as partes. A única reação possível dos oprimidos parece ser a própria violência: à medida que o crime cresce, suas armas se tornam mais sofisticadas e os conflitos, mais mortais.
De acordo com o rumo da história, a violência dentro da comunidade toma tamanha proporção, em razão do início das guerras internas, que a última parte do livro chega a ser desgastante, não sendo possível nem mesmo se apegar aos personagens, pois muitos morrem algumas páginas depois, seja nas mãos da polícia, seja pelo conflito entre facções. Cidade de Deus é uma escalada de violência e crueldade, na qual a alegria da comunidade e a paisagem carioca vão se esmaecendo junto ao tom poético da narrativa, substituídas pelo medo constante que acomete até quem não vive do tráfico, mas compartilha com ele seu habitat.
Como as personagens do livro, Lins, com sua obra, se dispõe ao embate: não suaviza a opressão, não propõe final feliz. No cenário das últimas décadas, não há mais perspectiva de superação da desigualdade social, tampouco de conciliação entre as classes, logo, não há mais tentativas de atenuar o cenário e nem fetichiza-lo. “A alternativa, portanto, é converter a violência cotidiana em força simbólica, por intermédio de uma produção cultural (...)”[1]. O resultado é Cidade de Deus: um retrato cru e poético das diversas faces da vida da população periférica e da estrutura genocida que a envolve.
[1] Citação de João C. de Castro Rocha
Referências bibliográficas:
ARANTES, Paulo Eduardo. 1964, o ano que não terminou. O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 206-236.
CASTRO ROCHA, João César de. A guerra de relatos no Brasil contemporâneo. Ou: a “dialética da marginalidade”. Letras, n. 32, p. 23-70, 2006.
SCHWARZ, Roberto. “Cidade de Deus”. Sequências brasileiras, 2ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 163-171.
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