Retrato de um policial existencialista em meio a um futuro distópico
Recomendações de músicas para ouvir lendo o texto:
Vangelis - Blade Runner Blues
Vangelis - Main Titles
Vangelis - Love Theme
Barulhos metálicos e explosivos no escuro da tela. “Los Angeles. Novembro, 2019”. Em meio a um céu alaranjado, poluído e noturno, a câmera abre e nos é revelada uma cidade que perde-se na linha do horizonte como uma imensidão de torres pontiagudas que constantemente emitem luzes neon embaixo do tráfego de carros voadores. Um raio despenca dos céus, mesclando o barulho do trovão com o de uma explosão de fogo emitida pelos gases do topo de um dos prédios. Camuflada nesses barulhos estranhos, a trilha sonora é introduzida por meio de sons sintetizados e épicos que simulam um clima sonoro de jazz, típico de filmes noir[1] do gênero policial.
Eis a introdução de Blade Runner (1982) que em questão de poucos segundos joga o telespectador num mundo distópico[2] e sem esperança, cenário do que veio a ser mundialmente reconhecido como um dos maiores filmes de ficção científica do cinema. Por mais que a obra combine a maestral direção de Ridley Scott, a linda trilha sonora de Vangelis, o minucioso trabalho com os efeitos visuais e as icônicas atuações de Harrison Ford e Rutger Hauer, muito da genialidade do filme deve-se também à forte inspiração no livro Androides Sonham com Ovelhas Elétricas ? (1968) de Phillip K. Dick.
Reconhecido como um dos pais da ficção científica da literatura moderna e precursores do gênero cyberpunk[3], K. Dick foi o responsável por escrever tal obra que, apesar de diferir muito do filme, sustenta-se como uma obra-prima da narrativa policial hard-boiled[4]. No romance, a cidade chuvosa, palco de toda história clássica do gênero, é convertida em uma cidade em que se neva poeira radioativa. O planeta Terra foi devastado por uma guerra atômica e grande parte da população sobrevivente emigrou para os mundos-colônias, fugindo da poeira que inibiu a luz do sol e extinguiu inúmeras espécies de animais e plantas. Toda criatura viva se torna, então, um objeto luxuoso de desejo para aqueles que permaneceram. Para a maioria que não pode pagar por um espécime autêntico, empresas começam a desenvolver réplicas eletrônicas e incrivelmente realistas de animais e até mesmo de seres humanos. No caso dos últimos, os androides orgânicos (Nexus-6) são utilizados como força motriz dos programas de colonização dos mundos extraterrestres.
No contexto dessa terra distópica, seis androides são dados como foragidos de uma colônia de exploração em Marte e encontram-se infiltrados como seres humanos em meio a uma San Francisco decadente. Rick Deckard, então, entra em cena como o responsável a identificá-los a partir de um teste de empatia, denominado Voight-Kampff, e eliminá-los. Desde o começo da trama, Deckard nega o título de policial, o que já marca o começo de sua caracterização como um detetive hard-boiled. O nosso herói aqui não é propriamente um mocinho, preocupado com o bem-comum, ele é um caçador de recompensas, profundamente individualista, fracassado, cético e motivado pelo dinheiro. Prova disso é o fato de Deckard ser totalmente movido pela ambição de substituir a sua ovelha elétrica de estimação por uma de verdade, o que seria a realização de um sonho e a sua maior expressão de status social. Durante a narrativa toda, a personagem encontra-se carregando um catálogo da loja em que pretende efetuar a compra, como quase um lembrete do motivo de estar se arriscando na busca pelos androides. Em certa passagem, Rick é até subornado para omitir uma informação para a polícia sobre a veracidade do teste Voight-Kampff em troca de uma suposta coruja de verdade.
Entretanto, é durante essa busca incessante pelo sucesso financeiro e o contato com as motivações por trás dos robôs que Rick vai percebendo que a linha que separa humanos de andróides não é tão nítida como acreditava. Enquanto o protagonista humano pauta a sua vida pela aspiração ao material, os andróides estão em busca de ampliar o seu curto tempo de vida e aproveitar ao máximo o tempo na terra. É nesse ponto que a obra de Dick se destoa de uma mera narrativa policial futurista e adquire um forte caráter crítico e existencialista. As variadas discussões levantadas pelo próprio título da obra demonstram isso: Deckard tem uma ovelha elétrica e sonha em ter uma de verdade, logo será que Androides Sonham com Ovelhas Elétricas? Será que o andróide, como o ser humano, tem a capacidade de sonhar e também ter alguma ambição? Seria o androide mais humano do que o próprio ser humano no tocante da forma que encaram a vida?
As discussões apresentadas pelo livro são intermináveis, mas, no fim, o tema que mais se destaca é o da corrupção da natureza humana. A cidade, retratada como um local meramente corrompido pela violência, sexo e drogas nas narrativas policias do gênero, aqui adquiri uma feição de um futuro desolado em que o ser humano perdeu a capacidade de sentir devido a sua autodestruição. O vazio dentro de cada um é tão grande que as pessoas escolhem, através de um sintetizador de ânimo, quais sentimentos elas irão sentir ao longo do dia. Os abismos de desigualdade social são tamanhos que os ricos não se encontram mais na terra e os que ficaram tem a sua morte acelerada dada a toxicidade do ar.
No fim, Androides Sonham com Ovelhas Elétricas? mescla as características mais marcantes do detetive hard-boiled em um contexto distópico extremamente bem trabalhado e pertinente nos dias de hoje a narrativa com questionamentos filosóficos sobre a natureza e a autodestruição humana. O resultado é uma pérola da literatura de ficção científica que tanto sustenta quanto eleva a adaptação cinematográfica de Ridley Scott.
[1] Noir: expressão francesa designada a um sub gênero de filme policial inspirado em romances de suspense dos anos 20 e 30 com uma estética preto-e-branco, fortemente influenciada pelo expressionismo alemão.
https://pt.wikipedia.org/wiki/Film_noir
[2] Mundo distópico: lugar hipotético contrário a uma utopia, que, numa sociedade futura, se define por situações de vida intoleráveis, opressoras e autoritárias.
https://www.dicio.com.br/distopico/
[3] Cyberpunk: sub-gênero literário da ficção científica, conhecido por seu enfoque de "alta tecnologia e baixa qualidade de vida" ("High tech, Low life").
https://pt.wikipedia.org/wiki/Cyberpunk
[4] Hard-Boiled: sub-gênero do romance policial que surge nos Estados Unidos nos anos 20 e que aproxima-se muito da ficção noir. É caracterizado pela forte dose de realismo e a denúncia da corrupção social através da narração de um detetive cínico, individualista e ganancioso.
https://pt.wikiqube.net/wiki/Hardboiled
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