É sabido que o jornalismo esportivo, de forma geral, é e sempre foi, ao longo da história, um espaço de interlocução, expertise[1], prática e dominação majoritariamente masculino, já que a masculinidade sempre imperou sobre o campo do conhecimento esportivo, pois era somente a partir dela que se detinha um “lugar de fala” socialmente aceito para dialogar sobre o esporte, e, consequentemente, só havia homens nas matérias, nas entrevistas, nas reportagens, nas redações e nos telejornais esportivos. Contudo, no contexto atual, graças às conquistas possibilitadas pelo movimento feminista e ao enfraquecimento progressivo do patriarcado, é mais comum vermos, embora numa escala ainda infinitamente menor, as mulheres ocupando estes espaços, tanto física quanto simbolicamente.
Todavia, de acordo com o Internacional Sports Press Survey (ISPS), pesquisa realizada pela German Sport University Cologne (Horky & Nieland, 2011 citado em Brum & Capraro, 2015), apenas 8% das reportagens de cunho esportivo são produzidas por mulheres ao redor do mundo, enquanto que, no Brasil, esse número é ainda menor, sendo de apenas 7%. Isto salienta o fato de que o esporte ainda é, essencialmente, um espaço androcêntrico[2], marcado pela legitimação de estereótipos e de preconceitos, responsáveis por subjugar as mulheres em uma
condição de inferioridade quanto às suas competências profissionais quando comparadas às dos homens, bem como por causar desigualdade de gênero tanto na prática esportiva, propriamente dita, quanto no jornalismo esportivo.
Sendo assim, quando as jornalistas conseguem se inserir no segmento desportivo, principalmente no contexto dos telejornalismos, das entrevistas e coletivas de imprensa, elas são submetidas a um rigoroso critério que delineia e delimita quais delas serão aceitas e quais não, tendo como referência os padrões de beleza e de feminilidade social e culturalmente impostos. Entretanto, este “processo seletivo” não é o mesmo para os homens, já que, normalmente, os jornalistas que vemos nos telejornais esportivos e nas entrevistas não se restringem a estes moldes. Portanto, não importa o quão excelentes repórteres, âncoras[3] ou apresentadoras elas sejam, se não forem brancas, magras, bonitas e jovens, serão dispensadas destas funções e substituídas por homens (Chambers, Steiner & Flemming, 2004 citado em Brum & Capraro, 2015).
Dessa maneira, as mulheres que conseguem adentrar no jornalismo esportivo, têm que demonstrar, além da competência profissional e da beleza física, que entendem das regras e das estratégias de jogo, bem como devem apresentar conhecimentos específicos sobre os jogadores, sobre as partidas, sobre os técnicos e sobre a história do clube, de forma a legitimar que elas realmente merecem ocupar tais espaços. Nesse contexto, as jornalistas esportivas são obrigadas a conviver com deboches, ironias, constrangimentos e preconceitos recorrentes no exercício da profissão, pois, como já descrito, o machismo está ainda muito consolidado nesse
meio (Pacheco & Silva, 2020).
Desse modo, Bourdieu discute a questão de que, embora as mulheres estejam desempenhando funções profissionais cujas quais, anteriormente, seriam impossibilitadas de executar, ainda assim a equidade de gênero não foi alcançada, já que elas continuam assumindo as posições subordinadas e, geralmente, ganhando menos por isso (Bourdieu, 2007, p. 110 citado em Brum & Capraro, 2015). Voltando à perspectiva do jornalismo esportivo, Willis salienta que a banalização do trabalho das mulheres nestes espaços, bem como as piadas pejorativas, ironias e constrangimentos frequentemente vivenciados por elas, originam-se dos estereótipos de que a mulher não pertence legitimamente a este ambiente e, portanto, elas são desmerecidas e desrespeitadas (Willis, 1994 citado em Pacheco & Silva, 2020).
Assim sendo, ocorrem também, porém de maneira velada e muito menos discutida, assédios sexuais, comentários chulos e provocativos, insinuações de cunho erótico, acusações de que elas teriam utilizado de relações sexuais a fim de ascender na profissão e de alcançar posições de destaque e prestígio, bem como para conseguir entrevistas e reportagens exclusivas (Pacheco & Silva, 2020). Nesse sentido, sabe-se que, para além do jornalismo esportivo, todas as vezes que mulheres ocupam lugares de importância nas relações hierárquicas de trabalho, incidem sobre elas, direta ou indiretamente, difamações de que teriam usado da sedução para estarem onde estão, desprezando suas competências intelectuais e profissionais.
No entanto, pouco se ouve falar a respeito dos casos de assédio sexual e moral para com as jornalistas esportivas, já que há uma certa naturalização destas violações nesta área. Todavia, tais ocorrências são, infelizmente, relativamente corriqueiras, ao passo que parece ser normal ter que lidar com isso quando se é uma jornalista atuando no contexto esportivo. Logo, acontece um silenciamento destas mulheres em prol da permanência neste meio, já que, para continuarem nele, é preciso relevar tais formas de violência e admiti-las como sendo normais. Porém, ao fazerem isso, estas mulheres acabam por consolidar, ainda mais, estes crimes no jornalismo esportivo, tornando-os cada vez mais velados à proporção que são cada vez menos expostos (Pacheco & Silva, 2020).
Para tanto, é habitual que as jornalistas esportivas se blindem através de mudanças de vestimentas e de comportamento no ambiente de trabalho, adotando posturas mais firmes e menos espontâneas que lhes assegurem mais respeito nos campos, nas quadras e nas entrevistas com jogadores, torcedores e técnicos, bem como com os próprios colegas jornalistas e com seus chefes. Posto isso, reforça-se o fato de que o mundo do esporte foi constituído social, cultural e historicamente a partir da perspectiva masculina (Bourdieu, 2007 citado em Brum & Capraro, 2015), por meio de um processo que assegura os privilégios e o poder de dominação dos homens neste setor (Kidd, 1990 citado em Pacheco & Silva, 2020).
Para concluir, as jornalistas esportivas enfrentam inúmeras dificuldades, aqui discutidas, para se inserirem, se estabelecerem, se desenvolverem e ascenderem profissionalmente nesta carreira. Em suma, por mais que ainda estejam submetidas à diversas formas de discriminação e de violência, elas estão, embora de forma incipiente e gradativa, conquistando cada vez mais espaço e mais oportunidades de trabalho nesta profissão; como, por exemplo, a jornalista Renata Silveira, primeira mulher a narrar partidas de futebol masculino na TV aberta no Brasil, e que, em 2022, será a pioneira na narração de jogos da Copa do Mundo no Qatar, fato este que nos dá mais esperança de um futuro menos machista, patriarcal e androcêntrico, para as meninas e mulheres, no esporte e na vida.
[1] Expertise: Competência ou qualidade de um especialista.
[2] Androcêntrico: Relativo ao Androcentrismo, termo criado pelo sociólogo
americano Lester Frank Ward em 1903, que define o homem como ponto central,
havendo, portanto, uma supervalorização das ideias e dos pensamentos masculinos.
[3] Âncora: No contexto do jornalismo, é o jornalista que apresenta um telejornal.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRUM, A.; CAPRARO, A. M. Mulheres no Jornalismo Esportivo: uma “Visão além do alcance”? Movimento, [S. l.], v. 21, n. 4, p. 959–971, 2015. DOI: 10.22456/1982-
8918.52730. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/Movimento/article/view/52730. Acesso em: 30 jun. 2022.
PACHECO, Leonardo Turchi; SILVA, Silvio Ricardo da. Mulheres e jornalismo esportivo: possibilidades e limitações em um campo masculino. Rev. Estud. Fem., Florianópolis, v. 28, n. 3, e61002, 2020. Disponível em: http://old.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2020000300220&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 30 jun. 2022. Epub Dec 04, 2020. https://doi.org/10.1590/1806-9584-2020v28n361002.
Redação Marie Claire. Renata Silveira: a primeira mulher a narrar jogos da Copa em TV aberta no Brasil, 2022. Disponível em: https://revistamarieclaire.globo.com/Carreira/noticia/2022/05/renata-silveira-primeira-
mulher-narrar-jogos-da-copa-em-tv-aberta-no-brasil.html. Acesso em: 30 jun. 2022.
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