*Este artigo foi selecionado na 1ª Chamada Aberta*
Retrato de Maria Granham localizado no Museu Britânico, disponível em: https://www.britishmuseum.org/collection/object/P_1872-0309-436
Quando pensamos no Brasil do século XIX, mais especificamente em suas mulheres, muitas vezes podemos ser vítimas de estereótipos e ideias pré-concebidas. Para melhor compreender o passado, os historiadores fazem uso de diversos tipos de documentos, dentre eles estão os relatos de viagens de estrangeiros. Em sua maioria, essas narrativas foram escritas por homens que viajavam do Velho Mundo com missões científicas. Neste contexto, também é possível encontrar mulheres viajantes, porém, em menor número e com muitos interesses. Assim, o intuito deste artigo é refletir a visão da influente escritora e artista britânica, Maria Graham, sobre as diversas mulheres que viviam no Brasil, durante sua primeira viagem ao Brasil em 1821, descrita na obra “Diário de uma viagem ao Brasil” (1824).
Quando trabalhamos com literatura de viagem, uma escrita impressionista[1], devemos tomar muito cuidado com alguns aspectos, por exemplo: o lugar de origem do seu escritor, visto que ele irá carregar todo o universo cultural de seu país, com diversos interesses ou até prestar atenção no período em que foi escrito e publicado, se ocorreram ao mesmo tempo ou se a produção sofreu alterações posteriores a sua escrita. Somado a isso, temos a diferença de um texto elaborado por uma mulher, marcado por mais sentimentos e intimidade, assim como culpa, em outras palavras, uma submissão mesclada com um ar de superioridade. Tendo em vista esses cuidados, vamos dar uma olhada na perspectiva de uma inglesa, Maria Graham, provinda de uma metrópole sedenta de poder, para um território que ainda estava preso às amarras coloniais [2].
Ao desembarcar em Pernambuco, no dia 21 de setembro de 1821, Graham encontrou um ambiente com ideias revolucionárias fervilhantes. Nesse meio, a viajante socializou com diversas personalidades, dentre elas Madame do Rêgo[3]. Os elogios para essa senhora e suas filhas foram significativos, porque revelaram que as características louváveis para a inglesa eram: boa aparência, bons modos e domínio de línguas estrangeiras, neste caso, o inglês. Em contraposição, Maria Graham fez pesadas críticas à uma cena que presenciou, a de uma mulher branca surrando uma escrava negra, já que, como inglesa do século XIX, se posicionava contra a escravidão. Seus julgamentos, menos pesados, também atingiriam o âmbito da moda, ao descrever o vestuário tanto de homens quanto de mulheres, livres ou escravizados, valorizando as vestes à inglesa e à francesa e indo contra os trajes portugueses. Ainda em Pernambuco, Graham também se encontrou com um grupo de sertanejos, em que a mulher do grupo se vestia à francesa; com Miss Stewart, a única inglesa da cidade e uma imensa quantidade de escravas.
Tendo ancorado na Bahia em 14 de outubro de 1821, a autora se deparou com um ambiente de grande desigualdade. Ao visitar, com a mulher do cônsul britânico, a casa de amigos portugueses, Maria novamente formulou opiniões, com um tom de superioridade, baseadas no ambiente e no modo de vestir das mulheres, na qual as valorizadas eram as que se vestiam à francesa. Em suas palavras: “Não vi hoje uma só mulher toleravelmente bela. Mas quem poderá resistir à violenta deformação como a que o sujo e o desleixo exercem sobre uma mulher?”[4]
Em 15 de dezembro de 1821, Maria Graham chegou ao Rio de Janeiro, sede do império. Reparando na beleza natural e no cotidiano, a viajante relatou tanto sobre o trabalho e as vestes das lavadeiras quanto a rotina e trajes da corte de D. Pedro I. Reparou, também, nessa figura do príncipe e da princesa, tecendo grandes elogios a esta. Embora a viajante se compadeça com a situação do Brasil, denunciando injustiças, principalmente a escravidão, a escrita de seu diário foi marcada por um ar de superioridade característico de sua metrópole em conjunto com as limitações – ainda que carregada de privilégios devido as condições de classe e etnia – de uma mulher no século XIX. Já no ano de 1822, Maria Graham seguiu seu destino para o Chile, tornando-se viúva no trajeto. No entanto, ela retornou para o Brasil e para a Corte, voltando para a Inglaterra apenas em 1825 e falecendo em 1842.
Portanto, após analisarmos as diferentes descrições feitas pela viajante, podemos refletir que não é possível colocar as mulheres oitocentistas brasileiras em uma única definição. Ou seja, não podemos dizer a “mulher na colônia” ou a “mulher na independência”, pois, como vimos, há uma infinita variedade de onde as mulheres poderiam se encaixar. Quando não há uma pesquisa aprofundada, um olhar crítico para aquilo que nos é mostrado, corremos o risco de cair em estereótipos degradantes e irreais. Essa generalização rasa torna impossível um estudo significativo das diversas realidades, sejam das mulheres que viveram no Brasil no início do século XIX ou das mulheres que viajaram para essa e outras localidades no período apresentado.
[1] Escrita impressionista, no sentido em que os viajantes relatam as suas impressões sobre determinado local. Deste modo, deve-se tomar cuidado com as informações lidas, já que elas são relativas.
[2] O Brasil foi uma colônia portuguesa, desde seu “descobrimento” até sua independência em 1822. Há discussões historiográficas que defendem o fim da colônia em 1808 com a chegada da família real no Rio de Janeiro. Para mais informações veja: NOVAIS, Fernando A.. Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808). 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2019.
[3] Esposa do General Luís do Rêgo Barreto, administrador português que se destacou na repressão da Revolução Pernambucana. Nas palavras de Maria Graham, Luís do Rêgo era um “soldado e fiel a causa do rei [...] é homem bastante severo e, especialmente entre os soldados, mais temido que amado” (2021, p. 116).
[4] GRAHAM, Maria. Diário de uma viagem ao Brasil. 2. ed. Belo Horizonte: Garnier, 2021. p. 154.
ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo de uma história única. São Paulo:
Companhia das Letras, 2018. Tradução de: Julia Romeu.
GRAHAM, Maria. Diário de uma viagem ao Brasil. 2. ed. Belo Horizonte: Garnier, 2021
JUNQUEIRA, Mary Anne; FRANCO, Stella Maris Scatena (orgs.). Cadernos de Seminários de Pesquisa. São Paulo :Humanitas, 2011.
LIFCHITZ MOREIRA LEITE, M. Mulheres viajantes no século XIX. Cadernos Pagu, [S. l.], n. 15, p. 129–143, 2015. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/8635570. Acesso em: 21 jul. 2022.
SCOTT, J. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade, [S.l.], v. 20, n. 2, 2017. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/educacaoerealidade/article/view/71721. Acesso em: 10 jul. 2022.
SILVA, Isadora Eckardt da. Maria Graham, um olhar curioso sobre o Brasil: literatura e cultura na américa latina. Revista de Literatura, História e Memória, Cascavel, v. 5, n. 5, p. 239-252, 2009.
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