As barragens são estruturas que funcionam como um grande depósito de substâncias líquidas ou de misturas de líquidos e sólidos provenientes da exploração de relevantes atividades econômicas, as quais determinam as diferentes finalidades dessas estruturas. Dentre os principais objetivos da construção de barragens, destacam-se a acumulação de água para diferentes fins (irrigação agrícola, por exemplo), a contenção e o armazenamento de rejeitos de mineração ou resíduos industriais e a geração hidrelétrica. Segundo o relatório de segurança de barragens publicado pela Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) no ano de 2020, o Brasil apresentava, distribuídas por todo o território nacional, um total de 21.953 barragens cadastradas pelos órgãos fiscalizadores de barragens no país [1], sendo significativa a porcentagem de barragens classificadas como categoria de risco e que apresentam altos danos potenciais. Tais construções figuram importante elemento para o desenvolvimento econômico do país, mas sua realidade também integra graves impactos sociais e ambientais.
Além da destruição de ecossistemas, extinção de espécies animais e vegetais e da poluição das águas, o processo de construção, desenvolvimento e consolidação das barragens afeta diretamente as populações locais, sobretudo no que diz respeito às suas condições materiais e sociais de sobrevivência, levando, assim, ao empobrecimento da população, à desorganização das relações sociais e das formas de estruturação da comunidade, à configuração de um ambiente inóspito[2] e, por fim, ao deslocamento forçado da população, o qual é inevitável.
Neste sentido, a construção das barragens, ao gerar grandes transformações ambientais negativas, impossibilita a permanência dos habitantes das proximidades da região na qual o projeto será desenvolvido, obrigando-as, juntamente com suas famílias, a deixarem seus lares para trás em busca de um ambiente que permita segurança e boa qualidade de vida. Além dessa circunstância, o deslocamento forçado da população pode também ser motivado, sob a justificativa da garantia de segurança da comunidade e de análises técnicas, por decisões unilaterais dos órgãos públicos e privados responsáveis pelo empreendimento, pois as obras não poderiam ser realizadas sem a “limpeza da área”, cuja concretização é marcada por grande violência física. Cenário ainda mais grave se delineia em situações nas quais esses deslocamentos compulsórios são originados dos desastres ambientais causados pelo rompimento das barragens, como o ocorrido em Mariana e Brumadinho, resultando na morte de muitas pessoas.
É neste contexto de destruição que se evidencia o embate entre o discurso desenvolvimentista e a pauperização[3] das comunidades locais. Em meio à exploração de atividades econômicas vinculadas à ideia de avanço econômico do país, as barragens, ao viabilizarem expressivo acúmulo de capital, são colocadas como obras fundamentais para o desenvolvimento nacional e expansão de diversos âmbitos da economia, argumentando-se que tal infraestrutura é apta a concretizar o interesse coletivo. A defesa desses projetos engloba, inclusive, o argumento de modernização e progresso das regiões em que serão realizados, alegando-se que a instalação das barragens propiciaria impactos econômicos positivos para a população atingida, como a geração de empregos e a dinamização da economia local. Contudo, esse processo é permeado por grande violência simbólica e física: as terras das comunidades locais são expropriadas através de agressões e sob emprego de um discurso preconceituoso que pressupõe o “atraso” econômico e social dessas populações, desconsiderando suas peculiaridades e sua dimensão cultural.
Todo esse cenário de expropriação e violência fazem parte de uma política intencional que objetiva adequar os elementos naturais e as comunidades locais à lógica econômica do capitalismo, sob a qual há a apropriação das terras e do meio ambiente de maneira injusta e desigual. Desponta perversa racionalidade ecológica, cujo cerne é a imposição de projetos econômicos incompatíveis com a realidade socioambiental e cultural dos espaços. Ademais, mediante grande ambição lucrativa, os empreendimentos buscam a redução dos custos e o maior rendimento possível, por isso diminui-se os padrões de segurança das construções e busca-se materiais de pior qualidade colocando em risco a vida dos indivíduos que habitam nas regiões exploradas. As barragens fazem parte de uma política pública muito bem arquitetada, sobretudo, em torno da ideia de adequar sociedades e meios ambientes à lógica econômica acumulativa, seguindo o modelo de desenvolvimento eurocêntrico que já tem se provado ineficaz na garantia da sobrevivência da humanidade e que gerou pontos de ruptura do limite do colapso ambiental e climático.
Os impactos gerados por essas estruturas atingem desproporcionalmente a população e assumem cunho genocida[4] ao destruir as fundações essenciais da vida social e cultural das comunidades tradicionais – indígena, quilombola, sertaneja e ribeirinha –, impedindo a reprodução de suas dimensões política, social, cultural, econômica, religiosa e até mesmo biológica, por dificultar nascimentos no seio da população. Apesar de não haver o objetivo declarado de desintegrar as instituições fundamentais que estruturam essas comunidades, os projetos desenvolvimentistas das barragens integram conscientemente a destruição da liberdade, da segurança, da saúde e da dignidade humana das pessoas que fazem parte dessas populações, sujeitando o grupo a condições de vida que podem provocar seu extermínio.
Dito isso, empreendendo verdadeiras políticas de morte em prol do desenvolvimento econômico nacional, o Estado e as grandes empresas, como a Vale e a Samarco, criam justificativas para os deslocamentos forçados, para os assassinatos daqueles que se manifestam contra os projetos das barragens, para as perseguições e para a destruição de populações inteiras, tanto física, quanto culturalmente, construindo a narrativa da existência um inimigo comum – as populações locais –, que deve ser aniquilado para o bem-estar social e econômico do país.
Diante desse cenário de destruição, devemos defender a garantia da justiça ambiental, buscando concretizar a igualdade entre todas as pessoas no debate acerca do acesso, da ocupação e da utilização dos recursos naturais em suas próprias terras, afastando qualquer tipo de discriminação. Além disso, é preciso reconhecermos o dever comum de apoiarmos o Movimento dos Atingido por Barragens (MAB) em nosso país, que luta pela garantia dos direitos fundamentais dessas populações, principalmente o direito à vida e à terra, e cobrarmos o poder público por políticas que visem a concretização desses direitos em detrimento dos interesses econômicos do Estado.
[1] Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (Brasil). Relatório de segurança de barragens 2020 / Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico. -- Brasília: ANA, 2021. Disponível em: https://www.snirh.gov.br/portal/snisb/relatorio-anual-de-seguranca-de-barragem/2020/rsb-2020.pdf
[2] Inóspito: característica de local onde não se pode nem se consegue viver; sem condições de habitabilidade; inabitável. Fonte: https://www.dicio.com.br/inospito/
[3] Pauperização: empobrecimento permanente da população em decorrência da ausência dos meios necessários para a sobrevivência.
[4] Genocídio: Crime de Genocídio. Para os efeitos do presente Estatuto, entende-se por "genocídio", qualquer um dos atos que a seguir se enumeram, praticado com intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, enquanto tal: a) Homicídio de membros do grupo; b) Ofensas graves à integridade física ou mental de membros do grupo; c) Sujeição intencional do grupo a condições de vida com vista a provocar a sua destruição física, total ou parcial; d) Imposição de medidas destinadas a impedir nascimentos no seio do grupo; e) Transferência, à força, de crianças do grupo para outro grupo. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/d4388.htm
Referências bibliográficas:
da Silva Nobrega, Renata OS ATINGIDOS POR BARRAGEM: refugiados de um guerra desconhecida. REMHU - Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana [en linea]. 2011, 19(36), 125-143[fecha de Consulta 26 de Septiembre de 2021]. ISSN: 1980-8585. Disponible en: https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=407042013007
BITTENCOURT, Carlos. Política da ecologia e ecologia política. As relações institucionais da Samarco e do Estado no desastre de Mariana in Ecología política latinoamericana: pensamiento crítico, diferencia latinoamericana y rearticulación epistémica / Héctor Alimonda ... [et al.]; coordinación general de Héctor Alimonda; Catalina Toro Pérez; Facundo Martín. - 1a ed. - Ciudad Autónoma de Buenos Aires: CLACSO; México: Universidad Autónoma Metropolitana; Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Ciccus, 2017.
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