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Jennifer Aline Ernesto de Oliveira

Crise estética ou nova revolução imagética?

Apesar das disputas dos filólogos, não há consenso sobre a etimologia da palavra “carnaval”. Os significados atribuídos são “adeus à carne” ou “remova a carne”, tendo em vista que a festa antecede durante a quaresma[1]. E, da retirada da carne à celebração da carne humana exposta, no Brasil, temos um carnaval glamouroso, que conta com desfiles de escolas de samba nas capitais de São Paulo e Rio de Janeiro, com diversos blocos e trios elétricos pelo país, em Minas Gerais e Salvador.


Com frequência, discussões sobre classe, raça e gênero ganham a mídia durante esse período. Seja pelo uso de fantasias para satirizar um povo e suas lutas, seja pelo mal costume de homens que se fantasiam de mulheres durante a festividade. Além disso, pela magnitude da comemoração, ficam expostas às condições de trabalho extenuantes das classes mais baixas, que buscam uma renda extra em meio a folia. Com o complexo histórico social, político e econômico que o Brasil carrega, nenhum tópico será isento de controvérsias. No entanto, a repercussão da foto compartilhada em rede social[2] pela Rafaella Bastos, conhecida como irmã do jogador de futebol Neymar Júnior, viralizou pela diferença entre a foto editada e o que seria a foto do corpo real da musa que desfilou na escola de samba Salgueiro[3].

Foto compartilhada no Instagram vs. foto amplamente divulgada no Twitter.

O corpo flagrado e amplamente divulgado de Rafaella é um corpo normal, que pertence a muitas brasileiras. No entanto, a influencer costuma divulgar suas modificações corporais. E tal busca pela “perfeição” e o acervo de fotos alteradas no instagram, demonstram um fenômeno pouco debatido nos contextos acadêmicos e até mesmo feministas: o corpo como produto. O tema é pouco discutido porque o poder e o direito de mudar a aparência estética é aclamado pelo feminismo liberal, o tal feminismo que foi absorvido pelo mercado e pelas dinâmicas capitalistas. Ou seja, se a mulher não está feliz com o seu corpo ou com algum aspecto de sua aparência, ela tem todo o direito que o capitalismo tem a oferecer de modificá-lo até que esteja feliz.


É um assunto delicado, mas que não pode ser deixado de lado, isto porque o campo de estudo da psicologia, que trata dos transtornos alimentares, recebe a demanda das consequências dessa distorção entre a imagem e a realidade. Se por um lado há um esforço astronômico de crianças, adolescentes e mulheres adultas na busca do corpo perfeito com base nas figuras públicas das redes sociais, mas, no fim do dia, o “corpo perfeito” não existe, qual é o ponto da discussão que estamos deixando escapar?


Os feminismos contemporâneos de correntes revolucionárias têm em seu bojo a responsabilidade de elucidar temáticas como os direitos reprodutivos das mulheres bem como o direito de decidir sobre tal reprodução. Porém, o debate público insiste em dar ênfase à individualidade e apontar como farsa a imagem (evidentemente modificada) de uma mulher com um corpo normal e/ou natural.


A pressão estética e a gordofobia evidenciam a crise disfarçada de revolução imagética que está instaurada. Isto porque, vende-se, compra-se e aceita-se ser influenciado por imagens que não existem. E, é evidente a inexistência no mundo real, uma vez que a aparência perfeita apenas se mantém no virtual. Entretanto, quando comparada a uma representação mais próxima da realidade, da mesma pessoa, há o espanto. “O rei fica nu” e o público encara a dificuldade de lidar com as transformações da representação do eu, da auto performance e o autoaperfeiçoamento garantidos pelas ferramentas da tecnologia. Tais representações dificilmente têm demonstrado a realidade como ela é.


A ética e a estética sempre estão próximas, tendo em vista que a linguagem produz a realidade. Numa sociedade em que é permitida a modificação extrema da representação de si, qual é a ética esperada? Corpos anômalos? Normalização das cirurgias plásticas e do culto ao corpo. Uma sociedade evidentemente narcisista, em que as agulhas, cortes e suturas são mais confortáveis do que não pertencer a uma padronização coerente com aquilo que o público deseja ver e almeja ter acesso.


Destacou-se a figura de Rafaella Bastos no carnaval de 2023, porém, o processo não é recente, nem mesmo se restringe apenas às mulheres. As pesquisas indicam que em 2021, o Brasil alcançou o marco de país com o maior número de cirurgias plásticas no mundo, com aproximadamente 1.5 milhões de cirurgias ao ano[4].


Mas, o que há para se fazer diante do fenômeno estético que influencia o campo médico, psicológico, nutricional, social, político e econômico? O campo sociológico e literário podem instigar o debate e conscientização dos fundamentos e consequências das modificações corporais. Não há que se falar num processo fácil, nem confortável. A imagem é a representação mais forte que temos, e os aspectos de sua influência mudam políticas, governos e gerações.


Livros autobiográficos como Fome: Uma autobiografia do (meu) corpo (2017) tem o condão de trazer o desconforto à temática do corpo. Pare de se odiar (2018), Comece a se amar (2021) e Aurora: O despertar da mulher exausta (2022) são livros de brasileiras que têm circulado o debate público sobre o caminho para o autoamor e como parar de se odiar enquanto mulher. E, apesar das brasileiras estarem fazendo um ótimo trabalho na criação de conteúdo sobre autoestima e liberdade feminina, é necessário ir além.


A norte-americana Roxane Gay e a brasileira Ellen Valias[5], enquanto duas mulheres negras gordas, incomodam o público por viver um corpo gordo de forma explícita e tocar na ferida estética que mantemos exposta. O corpo e a estética são um produto social, e o corpo enquanto produto está exposto para ser vendido, consumido e aniquilado – quando não está nos padrões mínimos do mercado. Ou seja, em mais uma entre tantas polêmicas diárias que despontam nas redes sociais, sobre a “imagem vs. realidade”, sempre há a oportunidade de início de grupo de estudos, discussões profundas e elaboração de políticas públicas para o alarme das consequências do livre arbítrio da modificação corporal profunda e as suas consequências individuais e coletivas.


[1] período de quarenta dias, subsequentes à Quarta-feira de Cinzas, em que os católicos e algumas outras comunidades cristãs se dedicam à penitência em preparação para a Páscoa. Os cristãos costumam retirar a carne como penitência.


Referências bibliográficas

CERIBELLI, Marcela. Aurora: O despertar da mulher exausta. Editora Harper Collins, 2022.

GAY, Roxane. Fome: Uma autobiografia do (meu) corpo, Editora Globo livros, 2017.

GURGEL, Alexandra. Pare de se odiar. Editora best seller, 2018.

GURGEL, Alexandra. Comece a se amar. Editora best seller, 2021.



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