É sabido que a violência se configura como uma violação aos direitos humanos fundamentais e que ela pode se manifestar de diversas formas e em diferentes espaços. A agressão, quando sofrida na infância e na adolescência, naturalmente as fases de maior vulnerabilidade do indivíduo, é acobertada pelo sigilo e pelo silêncio, já que, na imensa maioria das vezes, ela é cometida no ambiente intrafamiliar. Porém, no território brasileiro, as crianças e os adolescentes são protegidos jurídica e institucionalmente por leis que visam assegurar seus direitos, além de possuírem estatutos e normativas que endossam tais garantias, como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Em 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) notificou as proporções pandêmicas da doença COVID-19 e que o distanciamento social seria a melhor maneira para se evitar a disseminação e a contaminação pelo novo coronavírus. Embora extremamente necessário e comprovadamente eficaz no combate ao agente infeccioso, o isolamento trouxe consequências negativas para determinados grupos sociais, como crianças e adolescentes que habitam lares por vezes mais prejudiciais e patogênicos[1] em comparação ao próprio vírus. Dessa forma, o ambiente familiar, onde estas pessoas deveriam estar mais seguras, não o é, em decorrência da violência doméstica.
A quarentena obrigatória fez com que as atividades cotidianas da população infantojuvenil fossem realocadas, exclusivamente, para o ambiente intradomiciliar, dado que as atividades externas e de convívio social estavam todas proibidas e, quando muito, adiadas. Desse modo, os indivíduos que moram e convivem com agressores em suas casas estiveram e continuam estando mais expostos à violência em função da necessidade do distanciamento social. Este crime, entretanto, se caracteriza por ser de difícil descoberta, pois ocorre em uma esfera privada, a qual favorece o silêncio, o sigilo e a impunidade do transgressor.
Além disso, o fechamento das escolas enquanto medida protetiva no combate ao coronavírus trouxe consigo um agravamento preocupante, visto que a escola exerce uma importante função protetora, pois é neste espaço onde as crianças e adolescentes geralmente manifestam a violência sofrida. Reconhece-se como essencial a figura do professor, cujo olhar atento e convívio frequente com os alunos, possibilitam-no perceber e identificar sinais implícitos ou explícitos de agressão, bem como garantem-no o poder de fazer o manejo adequado diante da situação estabelecida. Sem este contato pessoal com os professores e sem a frequência escolar, o indivíduo desapodera-se desta significativa rede de apoio, responsável por assegurar seus direitos.
Sendo assim, dados de organizações não governamentais e de organizações sociais divulgados pela mídia apontaram aumento no número de casos de violência infantojuvenil durante a pandemia, com o crescimento de 7,4% no Distrito Federal, 8,5% no Paraná, 32% em Pernambuco e 73% no Rio Grande do Sul. Por outro lado, de acordo com o Sistema de Informações de Agravos de Notificação (SINAN), observou-se uma queda progressiva do número total de notificações deste tipo de crime na maior parte dos municípios de Santa Catarina desde o início do isolamento social, na medida em que houve uma diminuição de 42% na quantidade de notificações no mês de abril de 2020, quando comparado ao mês de janeiro do mesmo ano.
Nesse sentido, é possível afirmar que o distanciamento social ocasionou a redução das taxas de denúncias devido à subnotificação[2]. A dificuldade de acesso aos serviços de assistência e, consequentemente, o decaimento das denúncias e das notificações advém de problemas como: o fato de boa parte da estrutura estatal de proteção à infância e adolescência (conselhos tutelares e delegacias) estarem prestando atendimento apenas de maneira virtual; a necessidade de reestruturação e adequação do sistema de saúde ao contexto de pandemia; a sobrecarga dos trabalhadores desta área devido ao crescimento absurdo das demandas de atendimentos e a intermitência dos serviços de transporte coletivo, estabelecendo dificuldades de deslocamento.
Diante do exposto, entende-se a urgência de estratégias que aprimorem o reconhecimento de casos suspeitos de violência e que amparem as vítimas, principalmente nesse momento de pandemia. Dessa maneira, são extremamente necessárias ações intersetoriais práticas e objetivas nas esferas sanitárias, judiciais e assistenciais, que visem assegurar os direitos da população infantojuvenil. Embora muito ainda precise ser feito, algumas normativas, medidas emergenciais e iniciativas a serem reproduzidas pelos estados e municípios já foram tomadas, cujo intuito é o de melhorar as políticas assistencialistas e o acesso a elas, diante do atual cenário de calamidade pública.
A título de exemplificação, menciona-se aqui a regulamentação da Lei estadual n° 23.644, de 2020, a qual permite o registro de atos de violência doméstica e familiar pela internet, por meio da Delegacia Virtual de Minas Gerais. Ademais, foi publicado no Diário Oficial da União de 8 de julho de 2020 o sancionamento da Lei n°14.022, assegurando o pleno funcionamento de órgãos de atendimento às pessoas em situação de violência doméstica ou familiar durante a pandemia, já que, conforme mencionado no decreto, o atendimento às vítimas é considerado serviço essencial, e não poderá ser interrompido.
Além disso, outras medidas também têm sido propostas, como mantenimento do trabalho dos Conselhos Tutelares, seja presencial ou virtualmente, garantia de atendimento 24 horas por dia pelos sistemas de notificação como o Disque 100, maior investimento em organizações civis responsáveis por amparar as vítimas, reconhecimento das casas de acolhimento enquanto serviço essencial e implementação de campanhas de alerta acerca da violência infanto juvenil - principalmente em farmácias e mercados, direcionando-as a parentes, vizinhos e amigos, pois estes indivíduos podem ter algum tipo de contato com a criança/adolescente, e realizar a denúncia.
Sendo assim, conclui-se que a diminuição das notificações de violência contra a população infantojuvenil no ano de 2020 não traz consigo entusiasmo e muito menos esperança da redução da ocorrência desta prática. Pelo contrário, como foi exposto e argumentado anteriormente, isso nos revela que as vítimas estão encontrando dificuldades para denunciar e para buscar o auxílio dos serviços de proteção e assistência à infância e à adolescência. Ademais, nesse contexto de pandemia, com o confinamento desses indivíduos em ambientes potencialmente depredativos, faz-se necessário a mobilização de toda a sociedade, atenta aos mínimos sinais de agressão, a fim de que as vítimas sejam protegidas, as denúncias sejam realizadas e notificadas e os danos sejam minimizados. A finalidade é que possamos desmantelar essa estrutura silenciosa que oprime e aprisiona crianças e adolescentes em situações de violência física e psicológica.
[1] Patogênico: Que provoca ou pode provocar, direta ou indiretamente, uma doença.
[2] Subnotificação: Ação ou efeito de não notificar corretamente, fazendo com que a notificação seja considerada ineficaz ou incompleta.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
LEVANDOWSKI, Mateus Luz et al. Impacto do distanciamento social nas notificações de violência contra crianças e adolescentes no Rio Grande do Sul, Brasil. Cadernos de Saúde Pública [online], v. 37, n. 1, 2021. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/0102-311X00140020>. Epub 11 Jan 2021. ISSN 1678-4464. <https://doi.org/10.1590/0102-311X00140020>. Acesso em: 24 maio. 2021.
MOTTA, Claudia. Violência contra crianças: como detectar e o que fazer para denunciar. Rede Brasil Atual, 2021. Disponível em: <https://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2021/04/violencia-contra-criancas-como-detectar-e-o-que-fazer-para-denunciar/>. Acesso em: 29 maio. 2021.
NISKIER, Rachel. Prevenção da violência contra crianças e adolescentes: do conceito ao atendimento – Campanha permanente da Sociedade Brasileira de Pediatria. Residência Pediátrica, v. 2, n. 1, 2012. Disponível em: <http://www.residenciapediatrica.com.br/detalhes/38/prevencao-da-violencia-contra-criancas-e-adolescentes--do-conceito-ao-atendimento---campanha-permanente-da-sociedade-brasileira-de-pediatria>. Acesso em: 24 maio. 2021.
PLATT, Vanessa Borges, Guedert, Jucélia Maria e Coelho, Elza Berger Salema. VIOLENCE AGAINST CHILDREN AND ADOLESCENTS: NOTIFICATION AND ALERT IN TIMES OF PANDEMIC. Revista Paulista de Pediatria [online], v. 39, 2021. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/1984-0462/2021/39/2020267>. Epub 28 Out 2020. ISSN 1984-0462. <https://doi.org/10.1590/1984-0462/2021/39/2020267>. Acesso em: 24 maio. 2021.
Comments