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Manina Cerqueira

Por trás da merenda escolar



Se você foi estudante de escola pública, com certeza se lembra da longa fila que se formava no horário em que o sinal tocava para o recreio, esse sempre foi um dos, se não o, momento mais esperado pelos estudantes, afinal, a expectativa não era só a de se alimentar com uma comida que estivesse ao seu gosto, o que nem sempre acontecia, mas também a de socializar com os demais alunos. A alimentação escolar é um tema que, apesar de parecer simples, pode afetar muito a identidade de alunos(as) que usufruem desse direito que muitas vezes não recebe a atenção que deveria.


Vamos partir do começo: estudantes de escola pública são, em sua maioria, pertencentes à classe baixa da sociedade e, sendo assim, é de se esperar que a alimentação escolar seja vista como uma forma de assistência a essa população, afinal, pelo menos em meu círculo, é comum encontrar histórias de familiares que viam na escola um lugar para comerem a comida que não tinham em casa.


Uma conhecida costuma brincar com a ideia de que ela foi criada a “base do Mucilon”.Essa frase poderia facilmente ser falada por uma pessoa rica, afinal, Mucilon é um alimento bastante caro. No entanto, quando dita por ela, possui um tom de triste ironia, pois a história por trás é a de que ela ia para a escola e levava consigo uma lata vazia de Mucilon, a qual dava para as funcionárias colocarem a comida que ela levaria para a família, que aguardava em casa sua chegada.


É inegável, portanto, que a alimentação escolar possui um caráter assistencialista, no entanto, ela não deveria se privar somente nesse sentido. Nesse contexto, cabe a pergunta: a alimentação escolar possui um caráter de prestar assistência ou de assistencialismo? Apesar de não ser óbvio, os dois termos possuem diferentes significados. Silva et al. escreve:


“Considera-se que ações assistenciais sempre serão necessárias quando há violação ou privação de direitos. A assistência, vale ressaltar, está relacionada à obrigação estatal de prover direitos, mediante políticas públicas que assegurem a dignidade humana. Ao mesmo tempo, a assistência se constitui em uma parceria entre poderes públicos e comunidade, possibilitando participação e recursos para a emancipação. Por sua vez, o assistencialismo distorce a ação assistencial, insinuando uma condição de retribuição à ação proporcionada. E, por isso, constitui-se em uma prática de dominação, produzindo corpos dóceis e manipuláveis.” (SILVA et al. p.04 e 05)


O texto citado acima fez-me relembrar anotícia de que o então prefeito de São Paulo no ano de 2017, João Dória, tinha como proposta incluir a “farinata” na refeição escolar. Se você não viu essa notícia ou não se lembra, com certeza está se perguntando do que se trata: a farinata nada mais é do que uma espécie de ração humana - isso mesmo, uma espécie de ração humana!

A “refeição” seria obtida através de alimentos que estivessem próximos do vencimento e do descarte, e o seu fornecimento não seria apenas nas escolas públicas, mas também faria parte do programa “Alimento para Todos”, tendo como objetivo a distribuição para a população mais carente da cidade.


Comer esse tipo de alimento tiraria completamente a dignidade do ser humano, afinal, a alimentação está longe de ser apenas o ato de mastigar e engolir. Ingerir a farinata com certeza afetaria a autoestima e a identidade daqueles alunos. Silva et. al (2018) reforça que dentro das escolas existem hierarquias onde os professores fazem parte desse sistema de poder e isso significa estar intimamente ligado ao poder de definir e determinar identidades, a autora faz uso de algumas situações importantes para exemplificar o que estou querendo dizer:


“Por exemplo, quando professores expressam representações sobre a alimentação escolar, associando seu consumo à condição de pobreza, podem estar contribuindo para legitimar uma identidade estigmatizada, desvalorizada e não desejada, visto que a identidade de ser pobre está associada a estigma, exclusão e culpabilização dos próprios sujeitos por sua condição de pobreza. Influências como essas podem contribuir para inscrever, em crianças e adolescentes, a naturalização de identidades de sujeição às estruturas de poder e de submissão às condições de pobreza e desigualdade.” (SILVA et al. 2018, p.05)


A alimentação, portanto, pode ser utilizada como um instrumento de poder. Quando João Dória planeja incluir a farinata nas refeições escolares, ele não quer dar assistência e muito menos se importa realmente com essas pessoas. Não foi um ato inocente, pelo contrário: um instrumento de dominação é sempre um instrumento de opressão. Distribuir a farinata - ou melhor, a ração humana - nas escolas, seria uma forma de deixar subentendido àqueles(as) alunos(as) que o lugar que devem ocupar será sempre o de sujeição, de humilhação e de pobreza.


Com esse pensamento, João Dória e muitas outras pessoas veem a merenda escolar somente com o caráter assistencialista, ou seja, como se ela fosse necessária somente porque as crianças são pobres, mas isso não é uma verdade. Abreu diz:


“Recolocando o problema, precisamos superar a concepção segundo a qual a merenda existe apenas porque as crianças são pobres e podem ser desnutridas. Na verdade, a alimentação escolar precisa ser encarada, segundo Lima (Cadernos do CEDES, n.15, p.56), como algo natural em um ambiente onde existem crianças que, por serem crianças, sentem fome.(ABREU, 1995, p.09)


Dessa forma, é necessário que a alimentação escolar seja vista como uma necessidade de todos, pois ninguém aprende estando com fome, isto é, uma criança de classe média/alta estando com fome durante o período de aula sentirá a mesma dificuldade de concentração apresentada por uma criança de classe baixa. A merenda escolar é, portanto, um direito do cidadão e não um instrumento para acabar com a desnutrição.


Em síntese, apesar de a realidade brasileira impedir que olhemos para a alimentação escolar somente pelo olhar pedagógico, urge a necessidade de pararmos de enxergá-la como um assistencialismo e passemos a olhá-la como direito do ser humano.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

SILVA, Edileuza Oliveira; SANTOS, Lígia Amparo; SOARES, Micheli Dantas. Alimentação escolar e constituição de identidades dos escolares: da merenda para pobres ao direito à alimentação. Cadernos de saúde pública, [s. l.], v. 34, n. 4, 2018.


ABREU, Mariza. Alimentação escolar: combate à desnutrição e ao fracasso escolar ou direito da criança e ato pedagógico?. Em aberto, [s. l.], v. 15, n. 67, 2008.


Sem autor: Dória deve incorporar polêmica “ração humana” na merenda escolar. Visão Oeste. 2017. Disponível em: https://www.visaooeste.com.br/doria-deve-incorporar-polemica-racao-humana-na-merenda-escolar/


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