No ano de 2009, a “Pesquisa sobre Preconceito e Discriminação no Ambiente Escolar” realizada pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas demonstrou que 98,5% dos(as) jovens mantinham distância social dentro do ambiente escolar devido a homofobia; e 87,3% tinham preconceito devido a orientação sexual de alguém. Mas você pode estar pensando “Poxa! Mas essa pesquisa é de 2009, antiga, provavelmente, hoje em dia, essas pessoas não devem sofrer mais esse tipo de coisa, afinal, são outros tempos, certo?” Errado!!!
A realidade não é bem assim. Apesar do esforço histórico da comunidade LGBTQIA+ para mudar esse cenário, a escola e o mundo ainda são um ambiente assustadoramente hostil para quem demonstra estar fora dos padrões exigidos pela sociedade. É o que nos mostra a “Pesquisa Nacional sobre o Ambiente Educacional no Brasil: ABGLT”, realizada no ano de 2016, ao apresentar dois dados chocantes: 1/4¼ dos LGBT’s sofreram agressões físicas na escola em algum momento; e 70% deles foram vítimas de agressões verbais.
Quando falamos em escola, estamos falando de jovens, em sua maioria de no máximo 18 anos, que estão em um período de formação educacional, emocional, física, mental e social, ou seja, é uma época de construção que se converte em destruição ante a constante violência, as qualis são submetidos(as) não somente por parte de outros alunos, mas muitas vezes de professores(as) e coordenadores.
Mas por que isso acontece por parte de quem, em teoria, deveria estar ali para auxiliar no processo do conhecimento daquelas crianças? Paul B. Preciado em seu texto “Quem defende a criança Queer?” tem uma das respostas para essa questão:
Os defensores da infância e da família invocam a figura política de uma criança que eles constroem de antemão como heterossexual e de gênero normatizado. Uma criança privada de toda energia e da potência de usar livre e coletivamente o seu corpo, seus órgãos e seus fluidos sexuais. Essa infância que eles pretendem proteger está cheia de terror, de opressão e de morte.” (PRECIADO, 2020, p. 69-70)
Isso significa que na maioria das vezes dentro das escolas não há espaço para a diferença, pois o que se almeja é sempre o igual. Cria-se a figura da criança idealizada e espera-se que ela se adeque às normas pré-estabelecidas e impostas, custe o que custar, qualquer tentativa de desvio é punida com violência de diferentes partes. Sendo assim:
Quem defende os direitos da criança diferente? Quem defende os direitos do menino que gosta de vestir rosa? E da menina que sonha em se casar com a melhor amiga? Quem defende os direitos da criança homossexual, da criança transexual ou transgênero? Quem defende o direito da criança mudar de gênero caso deseje? O direito da criança à livre autodeterminação sexual e de gênero? Quem defende a criança de crescer num mundo sem violência de gênero e sexual?” (PRECIADO, 2020, p. 70)
A partir do momento em que as escolas se negam a falar sobre a diferença, estão assumindo que todos são iguais e provocando um sofrimento exacerbado em quem se percebe como excêntrico, pois adequarem-se às normas impostas significa abdicarem de si mesmas. É necessário que essas crianças existam, que façam parte, que se fale sobre elas. É essencial que se faça isso para garantir-lhes a vida, privá-las da dor, deixá-las ser o que são dentro de seu tempo e de seus corpos.
Diante desse problema, a questão que proponho é: como trabalhar essa temática dentro do espaço da sala de aula, em especial nas aulas de literatura, e como esse gesto pode auxiliar na formação desses alunos para que não venham a reproduzir preconceitos, presentes na sociedade, e para que aqueles que se percebem como diferentes consigam se aceitar o mais cedo possível. Para começar, cabe destacar que os Parâmetros Curriculares Nacionais preveem que alunos de 1º a 8º série da educação básica estudem conteúdos que abordem os temas da Pluralidade Cultural e da Orientação Sexual.
Agora que você já sabe dessa informação, gostaria de propor uma reflexão: tente lembrar-se de algum momento em que teve contato com esses temas dentro das aulas de literatura e como ele foi abordado. Foi difícil o exercício, né? Por que será?
É provável que você tenha tido aulas de literatura durante toda a sua vida escolar, e mesmo com as orientações presentes nos Parâmetros Curriculares Nacionais a temática não aparece da forma que deveria, e isso acontece por diferentes motivos, o principal deles: a sociedade. Essa questão nem sempre é culpa do professor, seria ingenuidade da nossa parte pensar que todos esses profissionais não trabalham a temática simplesmente porque não querem. Professores(as) podem sim vir a ter atitudes preconceituosas dentro da sala e serem escancaradamente homofóbicos(as), por exemplo (atitude que deve ser repudiada e punida), mas esse não é o único motivo que leva um professor a não trabalhar a literatura LGBTQIAP+ com seus alunos(as).
Na maioria das vezes algo simples como pedir para que os alunos vistam roupas coloridas, para uma apresentação sobre diversidade, pode levar um profissional da educação não só a ser acusado de “Ideologia de gênero”, assunto abominável na visão da direita conservadora, como a ser vítima de escandalização e intervenção por parte de políticos. Esse não é um exemplo inocente, o caso realmente ocorreu com uma professora da Vila Guaíra, em Curitiba, no ano de 2017.
Outro motivo que pode levar esses profissionais a se esquivarem do assunto em sala de aula é a sua formação. Na maioria das universidades os alunos da licenciatura em Letras acabam tendo pouquíssimo contato com a literatura LGBTQIAP+, e quando ocorre, em grande parte das vezes, é através de disciplinas sem caráter obrigatório, o que faz com que esses profissionais saiam da universidade com uma formação rasa em tudo o que tange a temática do diverso.
Além disso, cabe destacar a importância da literatura em fazer os alunos olharem com senso crítico para a vida. Muita gente pensa que a literatura trata-se apenas de historinhas escritas por alguém e que possui apenas a função de entreter, mas isso está longe de ser verdade. Mendonça salienta que:
“É importante frisar o quanto a literatura contemporânea e, mais especificamente, a literatura LGBT seriam importantes. Seria uma forma de representatividade no meio artístico que poderia, assim, inspirar e incentivar alunos em fase de descoberta, aceitação e transformação a, ao se verem retratados ou retratando, buscarem seu lugar, caso queiram, na arte, especialmente na literatura brasileira.” (MENDONÇA; 2018, p.09)
A literatura, e a arte no geral, é um espaço em que esses corpos podem habitar e serem representados. Muitas, muitas vezes é somente ali que essas pessoas encontram acolhimento. Trabalhar obras LGBTQIAP+ dentro das salas de aulas é, primeiramente, fazer com que alunos(as) que sofrem violência dentro do ambiente escolar passem por um processo de humanização através do reconhecimento de suas vivências dentro da literatura.
E, fora isso, é uma importante ferramenta para que agressores se reconheçam como tal e para que assuntos sobre a diversidade sejam debatidos na tentativa de quebrar um ciclo de preconceito que muitas vezes se repete de pais para filhos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
DEPOIS da Tempestade: A LGBTfobia na Escola. [S.I]: Bruno Nomura, 2018. P&B. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=g_RAbnK61N8. Acesso em: 04 jun. 2020.
Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas. Ministério da Educação. Pesquisa sobre Preconceito e Discriminação no Ambiente Escolar. São Paulo: FIPE, 2009.
MENDONÇA, Gabriela Alves Brandão de. Importância da literatura contemporânea de temática LGBT para a educação. 2018. 18 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em Letras Português)—Universidade de Brasília, Brasília, 2018.
PRECIADO, Paul B.. Quem defende a criança queer? In: PRECIADO, Paul B.. Um apartamento em Urano: crônicas da travessia. Rio de Janeiro: Zahar: Schwarcz S.A, 2020. p. 69-73.
QUERINO, Rangel. Vereadores acusam professora de forçar “ideologia de gênero” por exercício com roupas coloridas. 2017. Disponível em: https://observatoriog.bol.uol.com.br/noticias/vereadores-acusam-professora-de-forcar-ideologia-de-genero-por-exercicio-com-roupas-coloridas. Acesso em: 03 jun. 2021.
SISMMAC. SISMMAC cobra defesa de professora acusada de "ideologia de gênero". 2017. Disponível em: https://sismmac.org.br/noticias/2/informe-se/6234/sismmac-cobra-defesa-de-professora-acusada-de-ideologia-de-genero. Acesso em: 03 jun. 2021.
Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Secretaria de Educação. Pesquisa Nacional sobre o Ambiente Educacional no Brasil 2015: as experiências de adolescentes e jovens lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais em nossos ambientes educacionais. Curitiba: ABGLT, 2016.
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