A cerâmica é o ofício mais antigo desenvolvido pelo ser humano, antes mesmo do que a escrita e até a agricultura! O artefato cerâmico mais antigo já descoberto é a Vênus de Vestonice (Fig. 1), produzida há cerca de 25 mil anos, na atual República Tcheca.
Fig. 1. Estatueta Vênus de Vestonice (cerca de 25 mil anos), descoberta em 1925 na República Tcheca. Fonte: Králík et al. (2002).
Além de artefatos arqueológicos e registros históricos de outrora, as cerâmicas constituem material importante no dia a dia atual. Potes, panelas, travessas, itens de decoração e artesanatos, cosméticos, implantes dentários, azulejos, ladrilhos e tijolos são algumas de suas infindáveis possibilidades de uso.
A Associação Brasileira de Cerâmica define que a cerâmica “compreende todos os materiais inorgânicos, não metálicos, obtidos geralmente após tratamento térmico em temperaturas elevadas”. A principal matéria prima para sua manufatura é a argila (caulinita, feldspatos sódicos e potássicos, calcário, quartzo, talco), que pode ser misturada com fibras vegetais, outros fragmentos cerâmicos e/ ou argilas menos moídas (grumos).
É interessante observar que muitas culturas desenvolveram tecnologias similares de fabricação de cerâmica de maneira independente. Existem registros de cerâmicas pela África, Europa, China, Japão e nos povos nativos das Américas. Isso é consequência da distribuição geográfica de argila por todo o mundo.
Ilustração do ciclo da argila em seus diversos ambientes geológicos. Fonte: Velde (1995)[2].
Ela é facilmente encontrada na natureza, em praticamente qualquer ambiente: em solos, lagoas, deltas, estuários e leitos de rios, para citar alguns. A sua formação pode ser explicada pelo ciclo da argila (Fig.2), que começa com o contato das rochas com a água na superfície da Terra, nas primeiras centenas de metros da crosta terrestre. Em termos simples, rocha + água = argila.
Por transporte mecânico (erosão), as argilas são conduzidas a um ambiente de sedimentação[1]: uma bacia sedimentar, o mar, um delta ou estuário de um rio (Fig. 3), onde podem permanecer por bastante tempo. Posteriormente, podem sofrer compactação e diagênese, os quais conformam um conjunto de processos que sucede a deposição dos sedimentos e que pode levar à transformação em rocha sedimentar, devido ao próprio peso da coluna de sedimentos.
Fig. 3. Fotomicrografias de lâminas delgadas de cerâmicas (petrografia cerâmica), mostrando: a) fibras vegetais; b) caco moído e poros, provavelmente deixados pela queima total das fibras vegetais. Fonte: Monteiro (2005)[3].
É possível também que esse ciclo comece pela atuação de alteração hidrotermal, que consiste na interação da rocha com fluidos hidrotermais, a altíssimas temperaturas, sendo a água o mais comum.
Além de serem facilmente encontradas, as argilas são, também, facilmente acessadas pelo ser humano, o que facilitou a sua utilização desde os tempos tão remotos pelas mais variadas civilizações, que sempre tiveram algumas necessidades em comum, apesar de suas diferenças, como o armazenamento e/ou o transporte de seus bens, água, vinho, grãos, peixes e alimentos em geral.
Então, a solução encontrada por muitas dessas civilizações foi a cerâmica. Tendo suas matérias primas facilmente disponíveis, o seu processo de produção consiste em hidratar a argila, acrescentar as outras matérias (fibras, fragmentos cerâmicos, grumos), moldar o objeto desejado e submetê-lo à queima em uma fogueira ou forno. Em termos simples: argila + calor = cerâmica.
A hidratação proporciona à argila um estado físico plástico, moldável; essa é a propriedade que permite a modelagem do objeto. Ela é característica das argilas porque, diferente de outros minerais, a estrutura cristalina em que elas se arranjam interage com as moléculas de água, retendo-as na superfície dos cristais.
As outras matérias primas, como as fibras vegetais e outros fragmentos cerâmicos (Fig. 4), por exemplo, servem como “antiplásticos”, dando uma estruturação ao objeto e o auxiliando a manter a forma que lhe foi moldada.
Fig. 4. Fotomicrografias de lâminas delgadas de cerâmicas (petrografia cerâmica), mostrando: a) inclusões vulcânicas, como feldspatos e piroxênios e fragmentos líticos; b) microfósseis calcáreos parcialmente transformados depois do processo de queima. Fonte: Montana (2020)[4].
Por fim, o calor da queima, que atinge no mínimo 550 a 600° C, desencadeia as reações cerâmicas, reações químicas que transformam a argila em cerâmica e proporcionam suas principais propriedades, como a dureza maior em relação à argila, seu aspecto quebradiço e seu isolamento térmico e elétrico.
O estudo geológico das cerâmicas utiliza análises químicas e microscópicas. As análises químicas consistem em elaborar amostras e colocá-las em equipamentos especializados na análise, permitindo inferir principalmente a temperatura de queima. Já a microscopia óptica (Fig. 5), ou petrografia cerâmica, consiste em produzir lâminas delgadas e olhá-las no microscópio para identificar os minerais e as estruturas presentes, à procura de evidências das matérias primas utilizadas e os métodos de modelagem da cerâmica.
Resgatando o exemplo da Vênus de Vestonice, um estudo químico e microscópico concluiu que a principal matéria prima utilizada pelo povo que a produziu foi uma argila específica denominada loess, encontrada localmente no solo. A temperatura de queima inferida foi de 500 a 800° C, em fogueiras e fornos como os da Fig. 6.
Percebemos que as cerâmicas têm um papel imprescindível na história e, nos dias atuais, assumem papéis ainda mais diversificados e importantes. É válido ressaltar que as análises materiais fornecidas pela Geologia devem complementar a interpretação histórica, antropológica, geográfica e sociológica dos artefatos para um entendimento científico integrado das sociedades que os produziram.
Notas de rodapé:
[1]: Ambiente de sedimentação - local geográfico onde sedimentos, ou argila, são depositados, geralmente menos elevados em relação aos seus arredores.
Referências:
Foz, afluente, estuário e leito. Disponível em: < https://www.preparaenem.com/geografia/foz-afluente-estuario-leito.htm>. Acesso em 18/08/2022, 12h.
Informações Técnicas - Definição e Classificação. Disponível em: <https://abceram.org.br/definicao-e-classificacao/>. Acesso em 30/07/2022, 19h.
Králik M., Novotny V. Oliva M. 2002. Fingerprint of the Venus of Dolni Vestonice I. Anthropologie, XL/2, 107-113
Monteiro, L. C., 2005. Abrigos e Aldeias: análise dos contextos tecnológicos das ocupações de ceramistas na Cidade de Pedra, Rondonópolis, Mato Grosso. Dissertação de mestrado, 170 p.
Montana G., 2020. Ceramic raw materials: how to recognize them and locate the supply basins—mineralogy, petrography. Archaeological and Anthropological Sciences, 12: 175.
Vandiver P. B., Soffer O., Klima B., Svoboda J. 1989. The Origins of Ceramic Technology at Dolni Vestonice, Czechoslovakia. Science, 246, 1002-1008.
Velde, B., 1995. Origin and mineralogy of clay minerals. Springer, Berlin, 334 p.
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