O projeto “Documentário Ruas da Discórdia”, dirigido e roteirizado pelo feirense Gean Almeida e produzido pela Mídia Preta Independente Raízes Preta(i), promove a discussão ao redor da representação dos nomes escolhidos para identificar espaços urbanos - como nomes de ruas - desdobrando seus impactos para a história social e política brasileira e seus reflexos na atualidade. A obra mergulha em dois cenários: Salvador, primeira capital do Brasil, e Feira de Santana, segunda maior cidade da Bahia; tendo como principais discussões a reformulação dos nomes das ruas que reforçam a permanência e o protagonismo de identidades racistas, patriarcais(ii) e oligárquicas(iii). Para promover esse debate, o enredo é composto por convidados, que reúnem depoimentos de personagens sociais de Feira de Santana e Salvador, e pelas discussões sobre relações étnico-raciais, de gênero e classe, presentes na construção das duas cidades. Também é reforçado no documentário, a necessidade de substituir estes nomes para resgatar e valorizar toda a contribuição dos negros e negras , homenageando personalidades populares que fizeram parte da construção desses locais e, assim, recuperar o sentimento de pertencimento de cultura.
Ao longo do filme é aproveitado elementos da cultura afro-baiana, animações e imagens que apoiam o entendimento do espaço urbano discutido. Comprometidos com a inclusão, a produção contou com recursos de audiodescrição (AD), Libras e Legendas para Surdos e Ensurdecidos (LSE), estimulando a universalização do acesso às obras audiovisuais e não limitando ou excluindo uma grande parte da população brasileira.
Diante dos principais temas abordados pela obra, é importante termos em mente que entender o passado histórico da cidade é fundamental para compreender de onde vêm tais políticas de exclusão. Para isso, os principais recortes temáticos para nos aprofundarmos na temática do filme estão organizados nos subtítulos a seguir:
1. Espaço Urbano e Seu Funcionamento:
O espaço urbano reproduz e reflete a vida social, onde políticas hegemônicas(iv) públicas ou privadas criam processos que dominam e hierarquizam grupos sociais e, consequentemente, geram uma série de privilégios que ampliam a desigualdade nas cidades. No documentário, tal fato é mostrado quando a arquiteta e urbanista Gabriela Gaia expõe que o planejamento urbano desconsidera uma série de ruas, invisibilizando as identidades dos que vivem ali e muitas vezes criminalizando esses corpos.
2. Relação Entre História e Cultura da População Afrodescendente Nas Ruas Salvador
Algumas personalidades que compunham o ambiente urbano.
(Neste tópico, será exibido o ambiente urbano de Salvador durante o século XVI ao século XX):
Irmandades: associações religiosas que se reúnem para promover cultos, instaladas nos meios urbanos de Salvador, tornaram-se ambientes ideais para o surgimento de uniões étnicas, culturais e políticas. Elas atuavam nas cidades dando amparo, quando escravizados recorriam à justiça pela sua liberdade através da alforria, intervinham por perdão às penas de morte e grandes castigos destinados aos africanos e afrodescendentes.
Associações de canto: forma de organização dos africanos e seus descendentes que consistia numa estrutura de poder, de sociabilidade e de ritualização, sobretudo masculina, que reforçava a identidade africana, religiosa e de classe profissional. O líder do grupo chamava-se capitão-de-canto e a associação cantava seus pontos aos ancestrais e orixás, como uma maneira de manter o ritmo de trabalho e aliviar a tristeza. Eles se concentravam em pontos estratégicos da cidade de Salvador, como: Canto da Calçada, Cais Dourado, Portão do São Bento, Lago da Vitória, entre outros.
Vendedoras Negras e Lavadeiras: As vendedoras negras tiveram seus pontos de venda em meados do ano de 1831(v). Segundo a Câmara Municipal de Salvador, elas estavam espalhadas pela cidade de Salvador em áreas de intensa movimentação do comércio. Já as lavadeiras, que atuavam desde o século XVI, lavavam roupas na beira de rios e lagoas que contornavam as cidades da Bahia. Suas práticas se relacionam à Oxum, orixá das águas, numa demonstração da relação com o meio ambiente e a natureza.
Importância da Religião para a Organização Espacial dos Africanos e Afrodescendentes nas Cidades:
Como visto, a maioria dos papéis sociais citados, anteriormente, reproduzem práticas religiosas. Nesse contexto, pode-se observar a importância da religião para a manutenção do papel social e organização da população negra na cidade de Salvador, estes que assumem a religião como parte fundamental dos lugares que ocupam. Tal fato é evidenciado no documentário quando UH! Neto, educador social, diz que "rua é caminho, e caminho, é Exú”.
3. Mito Da Democracia Racial, Políticas Higienistas e o Capitalismo Como Modelo Que Mantém as Desigualdades Nas Cidades
O ‘mito da democracia racial’ foi difundido a partir de leituras de Gilberto Freyre(vi), em “Casa Grande e Senzala”, que ampliou uma visão positivista(vii) das relações do cotidiano entre etnias como se estas não fossem conflituosas. Elas foram absorvidas pelas elites acadêmicas, e também foram base para o projeto político, racista do país, de embranquecimento da população, implementado pela Era Vargas. Vale notar, que um dos nomes homenageados nas ruas de Salvador é Vargas, uma figura patriarcal, racista e que atendia aos interesses da elite branca, longe de representar de fato o povo que construiu a história cultural e que habita as ruas de Salvador e Feira de Santana.
Logo após a Proclamação da República em 15 de novembro de 1889, houve uma tentativa de desafricanização do Brasil. O discurso das doutrinas positivistas ganharam força, políticas higienistas surgiram, como por exemplo o Bota-Abaixo, exercida pelo prefeito Pereira Passos (RJ, 1902-1906). Essas políticas possuíam um discurso de modernização e de combate aos hábitos associados às populações pobres que viviam em locais insalubres e que poderiam promover doenças. No entanto, era escondido o caráter de exclusão e não assistência do Governo à população marginalizada e, também, o projeto de expulsão da população negra como forma de branquear os centros urbanos.
Tal política fez com que boa parte da população, em sua maioria negra, se dirigisse aos morros e subúrbios da cidade, dificultando ou impedindo a sua inserção e permanência nos mercados de trabalho. Ainda que os anos tenham passado, tais políticas racistas e segregacionistas se estendem até hoje por meio do sistema capitalista, no qual estamos ideologicamente inseridos, uma vez que ele é baseado no lucro e na exploração da força de trabalho. Desse modo, quando há investimento social, ele é feito de maneira mínima para manter o controle das populações exploradas e excluídas, sendo sempre articulados em favor dos interesses da elite composta.
Assim, o coletivo Terra Preta diz que: “Embranquecer a cidade significa repovoá-la com o tanto de coisas que foram sequestradas dela, como se não fosse digno, relevante, próprio ou real. A cidade é discursiva e politicamente construída por determinados setores agentes e sujeitos como uma ficção pequena, incompleta e que por muitas vezes aparta, minimiza, subjuga e demoniza aquilo que assegura que a vida não se acabe”, concluindo, é preciso refletir sobre quais nomes e culturas são apagados para que se tenham representações da colonização européia.
(i) Coletivo formado por pesquisadores, artistas, produtores culturais negros que tem como objetivo compartilhar narrativas afrodiaspóricas, através da criação de uma mídia antirracista (raízes TV). O canal no Youtube tem como objetivo utilizar o audiovisual como uma arma política, que potencialize e viabilize as formas de resistência, existência e ativismo dos mais novos aos mais velhos presentes no Estado da Bahia.
(ii) Patriarcais: Relações sociopolíticas que colocam o homem como sendo o detentor das relações de poder em uma sociedade. Vale lembrar que as sociedades patriarcais encaram o gênero masculino cisnormativo e a heterossexualidade com superiores em relação a outros gêneros e sexualidades.
(iii) Oligárquicas: Dentro das ciências sociais as relações oligárquicas são consideradas formas de concentração de poder político por poucos, podendo ser uma família, partido político, grupo econômico ou grandes empresas.
(iv) Políticas hegemônicas: são políticas que favorecem um determinado grupo sobre a maioria dentro de uma sociedade. Desse modo, as políticas hegemônicas atendem o grupo da elite do país em detrimento da maior parte da população, subjugando, principalmente, as minorias sociais e perpetuando privilégios econômicos.
(v) AMS, Livro de Posturas, vol 5., Postura Nº.57 (apud SOARES, 1996)
(vi) Gilberto Freyre: Gilberto Freyre (1900-1987) nasceu no Pernambuco, Recife. foi um sociólogo, historiador e ensaísta brasileiro autor de “Casa Grande e Senzala”
(vii) Positivistas: refere-se à corrente filosófica positivista difundida no século XIX e fundada por Auguste Comte. Tal corrente expandiu pensamentos de superioridade racial dos brancos pelas demais raças. Atualmente sabemos que essa corrente foi uma das formas violentas pelas quais as classes sociais dominantes justificaram suas opressões.
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