Segundo o dicionário, família é: "1. Conjunto de pessoas, em geral ligadas por laços de parentesco, que vivem sob o mesmo teto. 2 Conjunto de ascendentes, descendentes, colaterais e afins de uma linhagem ou provenientes de um mesmo tronco" (Michaelis). Esse é um laço difícil de ignorar. A produção audiovisual adora retratar esta relação e, hoje, reuni alguns trabalhos que vale a pena você conferir.
Central do Brasil (1998)
Um filme de Walter Salles, lançado em 1998. O enredo acompanha a trajetória de Josué (Vinícius de Oliveira), um menino pobre que presenciou a trágica morte de sua mãe e que sonha em conhecer seu pai, Jesus. Ele é acompanhado por Dora (Fernanda Montenegro), uma professora aposentada que trabalha escrevendo cartas para analfabetos na Estação Central do Brasil. Foi neste local que Dora conheceu o menino e sua mãe Ana (Sôia Lira). Ana pagou para que a professora escrevesse uma carta para Jesus, mas assim como a maioria das cartas que escrevia, Dora nunca a enviou.
Dora e Josué passaram por um relacionamento turbulento. Dora por ter um passado doloroso e sofrido, era uma pessoa ranzinza e sem paciência, e que acabou ficando com a responsabilidade de cuidar de uma criança que nem conhecia. Enquanto Josué, um menino inocente e ingênuo, que assistiu a morte da mãe, cresceu sem o pai e ficou abandonado no mundo.
Quando o assunto é família, não tem como ignorar os laços que surgem com Dora e Josué. Ela sendo uma mulher mais velha, que já sofreu muito com a vida e aprendeu sobre amor e amizade com uma criança que ainda estava conhecendo o mundo.
É impossível assistir este filme e não se emocionar, uma história simples, mas que reflete muito sobre a realidade brasileira. Ana, por exemplo, fugiu para o Rio pois não aguentava mais a violência de Jesus. Segundo o Instituto Datafolha e o FBSP, aproximadamente 27,4% das mulheres relataram ter sofrido algum tipo de violência ou agressão em 2019. Isso leva a uma possível maternidade solo e, consequentemente, a muitas crianças ficarem sem o nome do pai no registro. O último Censo Escolar, realizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em 2013, registrou 5,5 milhões de crianças brasileiras sem o nome do pai na certidão de nascimento
O espectador nunca chega a saber se Josué finalmente conheceu Jesus. Mas, o filme mostra que o menino amava e acreditava no pai, apesar da versão que a mãe lhe contara, sobre Jesus ser um homem bêbado e violento. A inocência de Josué fazia com que ele acreditasse que o amor de pai e filho era maior que isso tudo.
O filme é considerado um dos melhores trabalhos de Walter Salles, recebeu diversos prêmios e indicações, e a performance impressionante de Fernanda Montenegro garantiu uma indicação ao Oscar, como melhor atriz. Central do Brasil mudou a cena cinematográfica internacional do Brasil. Um clássico nacional que retrata o mundo antes da internet. Ele está disponível no Globoplay, com duração de 1h 55m. É definitivamente um filme que você não pode deixar de assistir!
Que Horas Ela Volta? (2015)
Um filme de Anna Muylaert, lançado em 2015, que conta a história de Valdirene (Regina Casé), uma empregada doméstica que trabalha na casa de uma família de classe média alta, em São Paulo. A crônica é um retrato da classe média brasileira, e traz muitas críticas a esse modo de vida. Por mais que o longa não se aprofunde muito nos assuntos tratados, instiga quem assiste a refletir sobre aquelas situações.
Valdirene saiu de Pernambuco para São Paulo, com o objetivo de melhorar sua vida e a de sua família, tendo que deixar para trás sua filha Jéssica (Camila Márdila). Primeiramente, ela trabalhou como babá de Fabinho (Michel Joelsas), e depois que o menino cresceu, ela continuou na casa como empregada doméstica. Isso fez com que ela não acompanhasse a infância da filha, enquanto cuidava do filho de uma outra pessoa. Valdirene dorme no serviço, talvez para evitar a deslocação, fato esse que a coloca sempre disponível para o trabalho, afastando-a da família, do lazer, e descanso.
Ao falarmos sobre família, em determinada cena, a patroa Bárbara (Karine Teles) diz que Val “é praticamente da família”. Esse discurso vem sendo debatido cada vez mais, afinal, o trabalhador tem sua própria família, ele não precisa de uma nova, apenas precisa que seu trabalho seja reconhecido e seus direitos sejam respeitados. Esse termo é altamente reproduzido, e é conhecido como “ambiguidades afetivas” (GOLDSTEIN, 2003). Mesmo sendo bom ou relevante fornecer este apoio emocional e financeiro, isso eleva as possibilidades de exploração do trabalho (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2019).
No filme, conseguimos observar algumas dessas explorações, isto é, situações que vão além da relação de trabalho. Mesmo trabalhando a tantos anos e fazendo de tudo para cuidar da casa, Valdirene ainda é tratada com inferioridade, principalmente por Bárbara. Já o filho da casa a trata de maneira diferente. Fabinho conviveu mais com a babá do que com a própria mãe, logo, ele vê em Valdirene tudo o que a mãe não foi para ele. É ela quem ele procura quando precisa desabafar ou pedir conselhos. Tudo isso entra na questão da ambiguidade afetiva.
Jéssica, por outro lado, nunca pôde viver e construir esse relacionamento com a sua mãe. Por morarem longe por longos anos, elas não conseguiram manter contato. O que gerou uma decepção na adolescente, mesmo que Val trabalhasse para proporcionar uma boa educação à filha.A história se passa próxima à data do vestibular, e é por este motivo que Jéssica pede para ficar com a mãe em São Paulo, para realizar a prova. Ela não imaginava que Valdirene morava no trabalho e que ela também ficaria lá. Assim que chega, ela é questionada por Bárbara sobre a sua capacidade de entrar na faculdade, por ser “muito concorrida”.
Ao longo do filme, observamos que Jéssica sempre se impõe e não tolera ser tratada com inferioridade. O que torna a convivência complicada. Valdirene não entende sobre seus direitos mais básicos, e acredita que as atitudes da filha são mal-educadas. Ela acredita que está sendo má com aqueles que sempre a ajudaram. Novamente, a complexidade das relações e o ultrapassar dos limites, faz com que ela não reconheça aquela relação como simplesmente um trabalho.
O longa é uma produção nacional tocante, que nos faz refletir sobre trabalhadores domésticos que ficam de fora dos nossos olhares. Como citado anteriormente, ele não se aprofunda muito nos assuntos abordados, por isso é importante pesquisar mais sobre o assunto e buscar mais referências. Mas é um ótimo filme para se assistir, ele está disponível no Globoplay e tem duração de 1h 54m.
Manhãs de setembro (2021)
Uma série de Luís Pinheiro e Dainara Toffoli, que conta a história de Cassandra (Liniker), uma mulher trans, que trabalha com entregas de aplicativo e canta em bares, mas sonha em trabalhar apenas com a música. Depois de muito sofrimento, ela começou a conquistar pequenas coisas, como alugar sua própria kitnet. Tudo vira de ponta cabeça quando Leide (Karine Teles), uma ex-namorada, reaparece com Gersinho (Gustavo Coelho), um menino que ela diz ser filho de Cassandra. Ela precisa lidar então com esta situação, pois também é responsável pela criança. Cassandra vê seu mundo desabar, ela não esperava por aquilo.
A produção é impecável, com uma trilha sonora incrível. O nome da série é uma homenagem à música de Vanusa, musa inspiradora de Cassandra. O elenco também é formado por grandes artistas, como: Thomás Aquino (ator de Bacurau), Paulo Miklos (Ex-vocalista dos Titãs), Gero Camilo (ator de Cidade de Deus), e Linn da Quebrada (atriz, cantora e ativista).
A série possui apenas cinco episódios, com duração aproximada de trinta minutos cada. Mesmo sendo curta, ela é extremamente emocionante e proporciona a reflexão. Por exemplo, pode-se ver a questão da identidade de gênero, quando Gersinho insiste em chamar Cassandra de pai. Assistimos, também, uma mãe exausta, que cuidou sozinha do filho. Ouvimos o desabafo de mulheres trans e travestis que não conseguem receber amor público, apenas em quatro paredes. A série proporciona diversos debates sobre família, diversidade, amor e muito mais. Você pode assisti-la no Prime Video.
Estas são algumas sugestões para você assistir e acompanhar. Caso goste de filmes e séries que retratam as questões familiares, recomendo também alguns outros títulos, como as séries Modern Family (2009), This Is Us (2016) e o filme recém lançado Instant Family (2021).
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