Quem é essa tal de Representatividade?
O dicionário define Representatividade como “qualidade de alguém ou de um grupo cujo embasamento na população faz que ele possa exprimir-se verdadeiramente em seu nome”, ou seja, significa dar voz e espaço a determinado grupo dentro de diferentes meios sociais. É através da representatividade que diferentes grupos conseguem criar identificação e serem, de fato, representados, principalmente no universo cinematográfico dos filmes e séries de televisão, desconstruindo o padrão de protagonista que que prevalece na grande maioria das produções: hétero e cisgênero[1].
O historiador de cinema Vito Russo, afirmava no seu livro The Celluloid Closet: Homosexuality in the Movies (1987), que o curta Dickson Experimental Sound Film (1895) foi o primeiro filme a fazer sugestão de uma relação homossexual, apesar da cena em si não apresentar nenhum elemento que vá além mostrar dois homens dançando ao som de um violino. Porém, só no ano de 1919 o filme alemão Anders als die Anderen (“Diferente dos Outros”) de Richard Oswald fez sua estreia, e ficou então conhecido por ser um dos primeiros, na história do cinema, a retratar abertamente e com profundidade a história de um casal homossexual.
O filme conta a história de um violinista, Paul Koener (Conrad Veidt) que mantém uma relação amorosa com um de seus alunos, Kurt Sivers (Fritz Schulz), mas acaba sendo descoberto e, por isso, começa a sofrer chantagem. Eventualmente, ele é julgado e condenado à prisão. No final, o filme pede a abolição do §175 do Código Penal alemão, que na época castigava com pena de prisão atos sexuais entre indivíduos do mesmo sexo.
Com o passar das décadas mais filmes foram surgindo, abordando, então, outros grupos que compõem a comunidade LGBTQIA+:
Mädchen in Uniform: Senhoritas Em Uniforme (1931) filme alemão, baseado na peça de teatro, foi um dos primeiros a narrar a história de um casal de lésbicas.
Zapatas Bande: O Bando de Zapatas (1914), ainda na década de 1910, um filme mudo alemão dirigido por Urban Gad, que foi o primeiro a retratar personagens bissexuais nas telas.
Glen or Glenda: Glen ou Glenda (1953), dirigido e estrelado pelo estadunidense Ed Wood foi um dos primeiros filmes a fazer referência a transexuais, mas atualmente podemos entender que o filme na verdade se encaixaria mais numa representação de Crossdressing[3].
E no Brasil? Aqui o primeiro registro de um filme com um enredo voltado para a temática LGBTQIA+ foi o curta “Um Clássico, Dois em Casa, Nenhum Jogo Fora” do, então estudante de cinema, Djalma L. Batista, lançado em plena Ditadura Militar, no ano de 1968. O filme narra a história de Antônio (Eduardo Nogueira) e Isaías (Carlos Alberto), dois jovens universitários que se conhecem pelas ruas de São Paulo e mantém intensa relação amorosa.
Hollywood e O Código Hays
No ano de 1930 se instaurou em Hollywood o Código Hays, que censurava e condenava filmes produzido nos Estados Unidos que abordassem certas cenas como, adultério, sedução e sexo, aborto, misgenação, escravidão branca (sim, isso mesmo que você leu), etc. Mais especificamente entre as cenas censuradas estavam aquelas que mostrassem atos de “Perversão Sexual”,que apesar de não usar diretamente o termo “relações homoafetivas”, se referia a ele. O código foi revogado somente em 1968, portanto, durante esse período a representatividade LGBTQIA+, que ainda era um tanto recente, se tornou ainda mais escassa. As poucas que eram feitas estavam subentendidas na trama ou no formato de personagens apresentados como vilões.
O Cenário Atual
A última pesquisa realizada pela GLAAD[4] no ano de 2020, concluiu que 70 (9,1%) das 773 personagens regulares em séries de televisão do horário nobre durante esta temporada, nos Estados Unidos, são LGBTQ – uma diminuição de um ponto percentual em relação à percentagem recorde do ano anterior de 10,2% e a primeira vez que se verifica um recuo desde o relatório de 2013-2014.
Além do número baixo de representação, que,por vezes, são feitas de maneira equivocada e, assim, acabam criando e perpetuando estereótipos, por exemplo: o criminoso psicopata de O Silêncio dos Inocentes (1991), as vilãs hipersexualizadas de Garota Infernal (2009) e Instinto Selvagem (1992), ou simplesmente os “eternos sofredores” como em Orações para Bobby (2009) e As Vantagens de Ser Invisível (2012).
Entre os outros tipos de representatividade negativa, podemos citar um arquétipo narrativo recorrente entre personagens LGBTQIA+ na mídia, como em Bury Your Gays (em tradução livre, Enterre seus Gays). Esse tipo de narrativa se refere à morte desproporcional e/ou sem justificativa das personagens LGBTQIA+. É como se em todas as histórias as personagens LGBTQIA+ tivessem que sofrer, do início ao fim, e mesmo quando não são mortas, ainda assim, não são permitidas de terem seu “final feliz”. Até porque, tal final, na maioria das vezes, é reservado às personagens heterossexuais, mesmo quando elas não são as protagonistas.
Também, vale mencionar aqueles filmes e séries que recorrem ao Tokenismo[4] e ao Queerbating[5], pois enxergam a representatividade como uma lacuna a ser preenchida, superficialmente, claro, e não como um processo natural de se contar histórias de forma plural e diversa.
Afinal, o que queremos no fim do arco-íris? Respeito!
Enquanto a luta continua, podemos desfrutar de algumas produções cinematográficas que mostram que é possível divertir, emocionar, inspirar, e provocar ao narrar histórias com personagens mais humanas. E para ajudar na escolha de um bom filme é só lembrar do Teste Vito Russo, pelo qual o filme em questão deve passar por três requisitos:
Ter pelo menos uma personagem claramente identificada como LGBTQIA+;
A personagem não pode ter como única característica sua identidade de gênero/orientação sexual;
A personagem deve ser essencial para a trama.
Deixo aqui como sugestão, também, a plataforma LGBTFLIX: uma galeria focada em curtas-metragens, disponíveis online e de graça, todos dirigidos por cineastas LGBT+!
[1] Cisgênero é a pessoa que se identifica com o sexo biológico com o qual nasceu.
[2] Crossdresing/Crossdresser - homem que se veste com roupas de mulher, mas não necessariamente se identifica como homossexual.
[3] GLAAD (Gay & Lesbian Alliance Against Defamation) ONG estadunidense responsável por monitorar a maneira como a mídia retrata as pessoas LGBTQIA +.
Disponível em: https://www.glaad.org/releases/glaads-where-we-are-tv-2020-2021-report-despite-tumultuous-year-television-lgbtq
[4] O tokenismo trata-se de uma inclusão simbólica que consiste em fazer concessões superficiais a grupos minoritários. Disponível em: https://www.politize.com.br/tokenismo/#:~:text=O%20tokenismo%20trata%2Dse%20de,direitos%20civis%20dos%20afro%2Damericanos.
[5] Queerbaiting é um artifício narrativo usado nas histórias para atrair pessoas da comunidade LGBT+ a consumir dado produto de entretenimento com a promessa de um personagem queer, mas que acaba por nunca se confirmar como tal. Disponível em: https://super.abril.com.br/blog/turma-do-fundao/queerbaiting-na-ficcao-saiba-o-que-e-e-por-que-e-prejudicial/
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