“Antes de tudo, da minha sexualidade, eu sou indígena. Isso é um fato”.
- Alisson Cleomar dos Santos, integrante da nação Pankararu, na primeira cena do documentário “Terra Sem Pecado”.
O documentário “Terra Sem Pecado”, dirigido pelo Krahô Marcelo Costa e, também, roteirizado por ele e André Gregory, carrega em sua produção o debate de que a luta indígena não se restringe apenas à proteção de seus territórios, mas também, à defesa de sua diversidade cultural, revelando que existe um movimento de resistência contra o preconceito sofrido pelos LGBTPQIA+[1], dentro e fora das aldeias. Sendo assim, para que o debate se desenvolva ao longo do curta, o grupo de estudantes organizou a pesquisa “homossexualidade Indígena e LGBTQfobia no Brasil, duas faces da mesma moeda” identificando o preconceito sexual a partir de dados históricos e relatos de indígenas.
Para isso, foi abordada a vivência de três indígenas, sendo eles: Alisson Cleomar dos Santos (Pankararu), Danilo Ferreira Alexandre (Tupinikim) e Fêtxawewe Veríssimo (Tapuya/Guajajara); também contou com a participação da antropóloga Braulina Aurora (Baniwa). Nesse sentido, paraampliar o repertório da pesquisa realizada pelos estudantes, houve também a utilização da obra “Viagem ao Norte do Brasil” do Padre Capuchinho francês,Yves D'Evreux, que relata o primeiro contato dos colonizadores com um indígena homossexual chamado Tibira, da etnia Tupinambá, que pode ser considerado a primeira vítima de LGBTPQIA+fobia relatada no Brasil.
A obra mergulha no tema a partir de um olhar sensível dos produtores sobre o estudo e desenvolve a discussão utilizando uma linguagem cotidiana, sem dificuldades para quem está de fora dos espaços acadêmicos, o que demonstra a preocupação e a necessidade dessa luta atingir a população de forma a conscientizá-la e deixar evidente a urgência de enxergarmos as sexualidades indígenas como uma luta e resistência que vêm de anos de colonização e políticas epistêmicídas[2]. Além do mais, o documentário pode ser encontrado gratuitamente na plataforma Youtube através do canal Terra Sem Pecado.
“Precisamos identificar como esse processo foi estruturado ao longo do tempo para partir para o processo de desconstrução da narrativa que gera esses preconceitos, essa violência e essa discriminação. Trazer isso para a academia é uma etapa de empoderamento dessas pessoas”- Marcelo Costa.
Diante da citação exposta acima, é importante termos em mente que conhecer o passado histórico de como os povos originários[3] sofreram com a dominação europeia, e entender como isso gerou o apagamento de suas identidades de gênero e sexualidade é fundamental, para que possamos reconhecer que a construção da narrativa colonizadora[4] impôs uma série de preconceitos que contribuem com o genocídio desses povos. Para isso, títulos com breves explicações serão apresentados a seguir para que possamos compreender um pouco mais da maneira como se deu esse processo.
Antes de vermos alguns tópicos do tema, é importante esclarecer que as sexualidades que conhecemos atualmente são derivadas da sociedade ocidental européia, vindas da colonização. De modo metafórico, elas vieram com ascaravelas e, dessa maneira, é importante termos em mente que anterior ao processo de colonização, as identidades indígenas não eram definidas por uma lógica binária e heteronormativa onde existe apenas a definição homem e mulher. A partir de estudos, foram encontrados termos como “Two-Spirit” (dois espíritos) que carrega consigo um pensamento decolonial[5], permitindo que esses povos consigam transcender aquilo que, antes, fora imposto a eles. Sendo assim, indígenas reconhecidos como “Two-Spirit” são aqueles que não correspondem aos padrões de gênero eurocêntricos e, portanto, assumem tanto o papel do gênero feminino quanto o masculino. A retomada da força deste termo nas aldeias é uma das formas de resistir aos mecanismos de controle que seguem operando, desde a colonização, para domesticar esses corpos.
Tibira e o início dos relatos de homofobia no Brasil Colônia
No Brasil de 1614 em São Luís do Maranhão, o documento “Viagem ao Norte do Brasil” do francês Yves D'evereux, registrou o indígena tupinambá Tibira como sendo o primeiro indígena identificado como tendo comportamentos homossexuais. Na época, tais comportamentos não eram nomeados como homossexuais, mas sim como sodomitas[6], tendo em vista que o termo homossexualidade e suas variantes é posterior e só foi cunhado no século XIX pela sociedade ocidental e branca. Nesse contexto, o termo sodomita era utilizado de modo pejorativo e com fins de criminalizar tais atos como sendo passíveis de punição. Foi dessa maneira que o tupinambá, após ser identificado tendo relações com outros homens e também performando feminilidade, a partir de seus cabelos longos e atuação em atividades consideradas pelos europeus como do gênero feminino, fora castigado e preso à boca de um canhão onde seria assassinado.
Partindo desse relato, convido todos a ler o livro “Tybyra: Uma Tragédia Indígena Brasileira” de autoria do Potyguara Juão Nyn. Segundo o autor, “Esta obra foy escryta partyndo da premyssa de cryar um novo documento que dyalogasse e atrytasse com o livro ‘Viagem ao Norte do Brasil’”. Portanto, o relato a partir dos olhares de Tibira, dramatiza e resgata o episódio ocorrido, denunciando a hipocrisia dos colonizadores. Tibira, aos olhos do colonizador, morre sem nome como tantos outros indígenas ao longo de nossa história, que seguem morrendo para que senhores tenham cada vez mais gado e soja para fartar suas bocas com a avareza pelo poder e dinheiro.
“Cada pedaço do meu corpo esfolado será semente, serey terra. Também serey fumaça, também vagarey pelos ares, lyvre feyto um vento forte… E essa ventanya um dya volta, em outros tempos, de outra forma! Cheya de fome, brocada [*] por Justyça!” (Tybyra: Uma Tragédia Indígena Brasileira, Juão Nyn, 2020, p.74)
Práticas que impuseram a colonização das sexualidades indígenas:
Desde o início da colonização, práticas sexuais que fugiam do modelo hegemônico[7] foram perseguidas pela Companhia de Jesus[8], domesticadas pela heterossexualidade compulsória[9] e o modelo de família cristão. Essa imposição era feita através de:
Castigos físicos como o açoitamento;
Políticas de casamentos Inter étnicos;
Rituais cívicos;
Imposição de padrões morais;
Códigos de vestimentas;
Cortes de cabelo: homem com cabelo curto e mulher com cabelos longos;
Nomes obedecendo a ordem binária europeia atendendo aos padrões de gênero masculino e feminino.
Portanto, todos os mecanismos citados anteriormente junto do projeto de demonização desses corpos como sendo sodomitas, luxuriosos e libidinosos, serviram como justificativas da época para exercerem as relações de poder colonial e catequização desses corpos pela Igreja Católica, a fim de causar alienação, domesticação, apagamento de suas culturas e formar uma mão de obra explorada pela Corte Portuguesa. É evidente, portanto, que ao longo desses anos várias etnias sofreram etnocídio[10] e, ainda hoje, seguem sofrendo a partir das mesmas lógicas, tendo em vista que o passado colonial continua presente e operando de maneira criminosa em nossa sociedade.
Etnias indígenas citadas:
Tupinambás: Habitam predominantemente o nordeste de Pindorama (nome que algumas etnias dão ao Brasil, demonstrando uma resistência ao colonialismo).
Tupinikim: “Os tupiniquins são um grupo indígena da família linguística tupi-guarani, pertencente ao tronco tupi. No século XVI, habitavam a costa do Espírito Santo e do sul da Bahia. Foram tupiniquins os primeiros índios a ter contato com europeus, quando o português Pedro Álvares Cabral chegou com sua frota ao Brasil.”
Pankararu: “Os Pankararu fazem parte do grupo mais amplo de “índios do sertão” ou Tapuia, caracterizado historicamente por oposição aos Tupis da costa e ao Jê dos cerrados à oeste. Muito pouco estudados etnográfica e linguisticamente, pode-se apenas inferir sobre seus movimentos pré-coloniais, quando aparentemente foram expulsos do litoral pela expansão no sentido Norte/Sul dos Tupis e, encontrando resistência para o avanço à Oeste, pela presença do Jê, se estabeleceram no submédio São Francisco (Dantas et alli, 1992).”
Tapuya/Piratapuya: Vivem na região de fronteira entre o Brasil e a Colômbia, às margens do médio curso do rio Papuri e do baixo e médio curso do rio Uaupés. O etnônimo Waikhana significa “povo peixe” e Pira-tapuya é um apelido que ganharam após a chegada dos colonizadores.
Guajajara: Os guajajaras habitam onze terras indígenas situadas no estado do Maranhão. A língua falada por eles é o tenetehara, da família linguística tupi-guarani.
Baniwa: “Os baníuas, banibas, Baniwa, banivas[2] ou walimanai (autodenominação)[3] são um grupo indígena que habita a Colômbia e a Venezuela e o noroeste do estado brasileiro do Amazonas, mais precisamente, as Áreas Indígenas Alto Rio Negro, Cubate, Cuiari, Içana-Aiari, Içana-Rio Negro, Kuripaco, Médio Içana, Médio Rio Negro I, Médio Rio Negro II e Xié.”
Krahô: Os Krahô vivem no nordeste do Estado do Tocantins, na Terra Indígena Kraolândia, situada nos municípios de Goiatins e Itacajá.
[1] LGBTPQIA+: indico aqui o texto de Lola Magalhães já publicado pela revista PTG onde é explicado detalhadamente sobre a sigla e mais definições.
[2] Epistemicídio: conceito elaborado pelo cientista social Boaventura de Souza Santos, que trata da destruição de formas de conhecimento e culturas que não são assimiladas pela cultura do Ocidente branco.
[3] Povos originários: povo nativo de um determinado lugar e que sua cultura está ligada ancestralmente na terra habitada.
[4] Narrativa colonizadora: a historiografia narrada e registrada pelos europeus e que foi, por muito tempo, tida como os únicos registros históricos, apagando por muitos séculos a narrativa das demais raças e etnias.
[5] Decolonial: escola de pensamento utilizada pelo movimento latino-americano que busca se libertar da produção de conhecimentos que vem das narrativas eurocêntricas.
[6] Sodomitas: termo de origem bíblica para designar atos sexuais praticados pelos moradores da cidade de Sodoma. De acordo com a definição dos dicionários de língua portuguesa, a sodomia é a prática de sexo anal entre um homem e outro homem ou uma mulher.
[7] Modelo hegemônico: o padrão tido como correto e a ser seguido em uma sociedade. Nesse tempo, as práticas sexuais hegemônicas eram controladas pela Igreja Católica e visava um relacionamento heterossexual e patriarcal. A consumação de atos sexuais era realizada somente depois do casamento, sendo para fins de reprodução e não por realização de prazeres da carne.
[8] Companhia de Jesus: Era uma ordem religiosa de caráter missionário para expandir a fé cristã para outros continentes. Seus membros eram denominados jesuítas e houve diversas expedições no Brasil Colonial para fins de ocupar o território, colonizar, ampliar o poder da e influência da Igreja e controlar corpos originários a partir da imposição da educação católica.
[9]: Heterossexualidade compulsória: é o nome que se dá ao poder exercido pela sociedade para que homens e mulheres mantenham apenas relações heterossexuais.
[10] Etnocídio: destruição da cultura de um povo.
Indígenas LGBTPQIA+ para seguir no twitter: @kaeguajajara @lesbicansada @juaonyn
Referências bibliográficas:
FERNANDES, Estevão Rafael. Decolonizando sexualidades: enquadramentos coloniais e homossexualidade indígena no Brasil e nos Estados Unidos. 2015. 383 f., il. Tese (Doutorado em Ciências Sociais)—Universidade de Brasília, Brasília, 2015.
link do Documentário Terra Sem Pecado: https://www.youtube.com/watch?v=BUuqAd-Gq8w
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