A nação brasileira é marcada por grande exuberância étnica e cultural, o Brasil representa um país que integra uma mistura de fontes culturais. Nossa sociedade é pluriétnica, caracterizada por raízes de todos os continentes e marcada por imenso complexo cultural de saberes, crenças e artes. A cultura brasileira é o resultado do encontro – não sem conflito – de diferentes povos. De maneira bem generalizada, podemos apontar três grandes raízes étnicas e culturais na formação do povo brasileiro: a indígena, a europeia e a africana. Nossa cultura traz, então, a beleza, a riqueza e a força de uma ancestralidade poderosa, sendo a miscigenação[1] e o sincretismo[2] suas características mais interessantes e originais, definindo-a para uma identidade aberta, plural, profundamente diversa.
O Brasil diverso, para além das misturas étnicas de matrizes culturais, estende-se também à compreensão da diversidade racial, diversidade de gênero, diversidade de classes e diversidade das formas de existência. É neste entendimento que emerge a percepção interseccional, cujo centro é a circunscrição dos diversos marcadores sociais e étnicos experienciados e vivenciados por diferentes grupos de indivíduos, tais quais as mulheres negras e pobres, as mulheres negras trans, os jovens negros e pobres, as mulheres indígenas, os homens trans e muitas outras intersecções sociais que configuram imensa e profunda diversidade.
Perante este cenário de pluralidade, o direito e a justiça democrática apresentam-se como instrumentos ideias para a concretização do respeito à alteridade e às diferentes formas de manifestação da vida. O direito e o acesso à justiça, constitucionalmente determinado, permitem a construção de uma sociedade igualitária e inclusiva que preza pelo desenvolvimento de políticas públicas, cujo ponto central seja a afirmação da diversidade e do direito de ser pessoa humana.
Desta forma, é papel fundamental do direito desenvolver legislação e políticas afirmativas aptas a possibilitar o direito de cada indivíduo de desenvolver-se e expressar-se conforme sua personalidade única. A justiça, neste sentido, precisa ser inclusiva, expansiva, democrática e antidiscriminatória, estendendo-se a todos, de maneira livre, sem qualquer forma de discriminação.
O caminho à concretização desta realidade inclusiva significa a superação de um abismo profundo de discriminações e a reestruturação de uma sociedade alicerçada em estruturas machistas, homofóbicas, racistas e misóginas. O direito deve ser transformado e configurar-se em ferramenta de transformação social, suprimindo o sistema opressivo que invisibiliza e exclui os indivíduos, sobretudo, aqueles marcados pela interseccionalidade que vivenciam a sobreposição e a combinação de sistemas de opressão. Assim, o direito deve superar sua condição de manutenção do status quo[3]. É neste contexto que emerge o direito da antidiscriminação.
Neste sentido, é essencial que os juristas, no manuseio dos instrumentos jurídicos e das leis, busquem combater as discriminações diretas e indiretas que permeiam os diferentes âmbitos sociais, afastando sua função de naturalização das violências contra as minorias. A discriminação direta é caracterizada pela intencionalidade e arbitrariedade, onde, em razão dos estereótipos sociais e das características sociais dos grupos, há a violação do dever de tratamento simétrico entre os indivíduos; enquanto a discriminação indireta, enraizada estruturalmente, consiste na perpetuação da situação de exclusão de grupos sociais, alvos de grande opressão, através de normas jurídicas e políticas públicas que causam impactos desproporcionais entre as diversas classes de indivíduos.
Nestes termos, para além do combate às condutas individuais de discriminação, o direito antidiscriminatório deve combater as estruturas sociais que determinam e perpetuam a dominação de alguns grupos sobre muitos. Tratamos aqui das estruturas racistas, patriarcais, misóginas e homofóbicas que moldam as ideologias de dominação e subordinação social, naturalizando-as na realidade do país. Para tal, o direito deve implementar mecanismos que garantam o pleno exercício de todos os direitos.
Todavia, infelizmente, a igualdade entre os indivíduos afirmada por nosso ordenamento jurídico é meramente formal, não se substancializa no plano material, o qual expressa grandes desigualdades sociais. O direito, em função da classe capitalista, se apresenta como instrumento de manutenção dos privilégios e como sistema de opressão das minorias, conservando o status quo. A igualdade frente à lei é somente presumida, uma vez que o termo “sujeito de direito” se refere a uma abstração da figura do homem branco, heterossexual e ocidental.
Portanto, devemos refletir sobre o real significado e alcance dos atuais instrumentos legislativos que buscam remediar essa desigualdade. Neste exercício reflexivo, observa-se que os termos de exclusão que amparam a discriminação também integram as demandas de inclusão dessas populações, evidenciando que os direitos garantidos às minorias – mulheres, negros, indígenas, comunidade LGBTQIA+ – apenas mitigam a situação de subordinação e não trazem soluções reais e concretas.
Diante disto, o desafio do direito da antidiscriminação na construção de uma pátria inclusiva consiste no fato da legislação específica, vinculada às minorias, reproduzir os determinantes de discriminação, ao mesmo tempo em que a legislação neutra intensifica as relações de subordinação e poder. Neste contexto, o Estado, por meio de seus instrumentos jurídicos, deve desenvolver políticas públicas e planos para a concretização da igualdade também no plano material, considerando, para isso, as disparidades de força que caracterizam a sociedade capitalista patriarcal.
O direito antidiscriminatório, para se firmar como instrumento de transformação social, não deve compreender a raça, o gênero e a sexualidade como meras categorias formais, pois tais elementos, sozinhos ou combinados, podem impedir indivíduos a terem acesso à uma vida digna, dificultando o exercício pleno dos direitos fundamentais. O entendimento legal baseado no individualismo deve ser abandonado, uma vez que, pressupondo o universalismo como parâmetro de análise, invisibiliza a opressão das minorias sociais.
A superação do sistema discriminatório e desigual em uma sociedade multicultural como a brasileira, delineia-se, inicialmente, em face de um projeto que permita a representatividade e a diversidade nas instituições e estruturas de poder, viabilizando a legitimidade dos processos decisórios ao serem protagonizados pelos diferentes grupos sociais. Na construção de um país de todos, o direito deve incorporar a luta pela emancipação social[4] e pela liberdade de qualquer forma de opressão, determinando o percurso para a ocupação dos espaços sociais por todos. Com a garantia de acesso pleno aos direitos para todos os cidadãos, o direito estabelece um ciclo de integração social, cujo desenvolvimento, ao mesmo tempo que engloba a todos, proporciona o respeito à diversidade e estruturação de uma sociedade diversa, igual e justa, contrapondo-se à segregação dos espaços sociais. Cabe ao direito impedir o Estado de produzir e reproduzir os padrões de discriminação.
Neste contexto, os aparatos e órgãos jurídicos devem adotar compreensão interseccional, com a finalidade de desenvolvimento de políticas emancipatórias, visando a liberdade, a igualdade, a justiça social e a democracia participativa. A justiça e o gozo pleno dos direitos devem ser estendidos também às mulheres, aos negros, aos indígenas, às pessoas com deficiência e aos pobres. Nas palavras de June Jordan: “a liberdade é indivisível”, não basta a luta parcial, a luta pela antidiscriminação deve ser libertadora e incluir a todos.
[1] A miscigenação consiste na mistura de diferentes raças, etnias e povos.
[2] O sincretismo é a fusão de diferentes elementos culturais e religiosos, resultando em nova crença ou concepção cultural.
[3] Estado ou situação que se mantém antes de qualquer alteração.
[4] A emancipação social significa a conquista e aquisição de liberdade e autonomia dos indivíduos, no espaço político e social.
Referências bibliográficas
COLLINS, Patrícia Hill. Se perdeu na tradução? Feminismo negro, interseccionalidade e política emancipatória. Paragrafo. Jan/Jun, 2017, v. 5, no1, p. 6 a 17.
MOREIRA, Adilson J. O que é discriminação? Belo Horizonte: Letramento, 2017. Capítulo 6, Discriminação Direta e Indireta, p. 95 a 105.
MOREIRA, Adilson José. Pensando como um jurista negro: ensaio de hermenêutica jurídica. Revista de Direito Brasileira, São Paulo, SP, v. 18, n. 7, set /dez. 2017, p. 393 a 421.
SCOTT, Joan W. O enigma da igualdade. Estudos feministas, 2005, p. 11-30. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/5544381/mod_resource/content/2/Joan%20Scott%20%20O%20Enigma%20da%20Igualdade.pdf.
Comentarios