A Netflix lançou no começo deste ano uma série documental chamada "Diários de Andy Warhol", baseada no livro com o mesmo nome. Nunca fui uma conhecedora da história de Andy, só sabia que ele era o cara de cabelos prateados que fazia obras coloridas e tinha alguma coisa a ver com a lata de sopa de tomate, o Velvet Underground e a Marilyn Monroe. Então, quando comecei a assistir a série, uma coisa já me espantou e, ao mesmo tempo, me instigou muito: desde 1968 até os seus últimos dias de vida, Andy ligava para sua amiga jornalista, Pat Hackett, para contar um pouco do seu cotidiano, dos seus sentimentos e percepções. Ele fazia isso todos os dias. Só esse fato já me prendeu, eu precisava saber mais sobre esse homem que fez uma autobiografia por telefone e que intencionalmente pediu que fosse publicada depois de sua morte.
E, então, sua voz aparece lendo essa história. A Netflix, com a permissão da fundação Andy Warhol, recriou sua voz com um programa de inteligência artificial. A sensação é de ter o próprio Andy contando sua história para o telespectador. Mas, nesse ponto, os entrevistados da série alertam: o que estava presente no diário era um ponto de vista, as coisas que Andy queria que viessem a público - ou seja, algo extremamente pessoal, mas, ao mesmo tempo, calculado. Por isso, é tão interessante escutar os relatos dos entrevistados, amigos próximos, colegas de trabalho, curadores, etc: as histórias vão se completando. E, ainda, por Andy viver em um momento, no qual era possível fazer registros fotográficos e videográficos em abundância (e gostar de fazer isso), o telespectador também pode ver as histórias, além de escutá-las.
Com isso, a imersão é completa. E é lindo.
A série, com uma abordagem mais intimista e pessoal, contrasta com as produções de Andy Warhol. Principalmente as mais famosas, que, ao serem vistas superficialmente, dão uma impressão de impessoalidade. Retratos de pessoas famosas, reprodução de marcas presentes no cotidiano, cores vibrantes, repetições… É tudo muito externo, e pouco contam sobre quem estava por trás disso tudo. Isso fazia parte de sua persona, da construção daquele artista com ar misterioso que usava uma peruca e não compartilhava muito da sua vida pessoal.
Até que o ícone morre, os diários são publicados e a curiosidade continua. Quem era Andy Warhol? Ou melhor, quem era Andrew Warhola?
Bom, Andy nasceu em Pittsburgh, filho de imigrantes do leste europeu. Morava em um bairro pobre, era uma criança pouco integrada, sofria bullying e não se encaixava naquele ambiente. Tinha muitas inseguranças em relação a sua auto-imagem, seu corpo e seu rosto, tanto na adolescência quanto na fase adulta. Sua mãe era uma católica ortodoxa fervorosa, algo que foi transmitido para Andy, que frequentou a igreja durante toda sua vida. Quando se mudou para Nova York, trabalhou como designer gráfico para revistas, e, posteriormente, começou a desenvolver suas famosas serigrafias. Andy foi também um empresário de muito sucesso, com a The Factory e a Interview Magazine. Ele era muito tímido e sensível, mas, apesar disso, era um excelente comunicador, participando de programas de TV como apresentador, fazendo vídeos, dando entrevistas, etc. E ele também era gay.
Essa última parte foi muito abordada pela série - vi em alguns lugares dizendo que foi até demais, afinal, porquê a sexualidade de Warhol importava tanto assim? Para começo de conversa, esse assunto só foi discutido após o óbito do artista. E, hoje em dia, o museu Andy Warhol em Pittsburgh o coloca como ícone LGBTQIA+. Para nós, em 2022, a sexualidade importa pela representação, ela importa pela identificação, ela importa porque durante tantos séculos não se podia falar sobre isso, não era possível se assumir sem correr riscos (e ainda hoje muitos lugares são assim). E Warhol era alguém que, apesar de nunca ter anunciado para os quatro ventos que era gay, também não era entendido como hétero. Seu amigo Chris Makos, um dos entrevistados no documentário, quando questionado em qual momento Andy se assumiu "fora" [do armário], responde que, na verdade, ele nunca esteve "dentro". Pat Hackett, a própria escritora dos Diários, diz na entrevista que: "ele não estava necessariamente orgulhoso de ser gay. Ele não queria ser um clichê. Em outras palavras, ele não gostaria de ser um artista gay famoso. Ele queria ser um artista famoso".
Na segunda metade do século passado, se assumir tinha um peso muito maior do que tem agora e o próprio documentário aponta o questionamento: será que Andy não deveria ter feito mais pela comunidade, principalmente levando em consideração a epidemia da AIDS? Tenho a impressão de que ele fez o que conseguiu. Talvez ele tivesse medo, ou talvez, para ele, simplesmente não fazia sentido sair falando por aí que era gay. Apesar disso, ele quebrou muitos paradigmas em relação a isso, principalmente com os trabalhos na The Factory, na série Sex Parts (1977) e na Ladies and Gentlemen (1975) (esta que, apesar de ter sido importante para trazer visibilidade para pessoas trans, também é problemática por não dar o devido crédito e mostrar a identidade das pessoas que apareceram ali [1]).
A sexualidade não o define, mas o constitui, assim como todos os fatos citados no parágrafo que tentam resumir quem era Andy Warhol. Ele também nunca levantou a bandeira dos imigrantes pobres, das crianças que sofrem bullying ou dos católicos ortodoxos. Mas tudo isso estava presente em seu trabalho. Aquelas ideias só vieram à sua cabeça pois sua construção como pessoa foi propícia para tal.
Podemos pegar um dos exemplos que eu citei logo no começo do texto: Marilyn Monroe. A série sugere que a obsessão de Andy com a produção de retratos de pessoas famosas estava diretamente ligada às imagens de santos que ele via quando pequeno, na igreja que frequentava. Este foi o primeiro contato que Andy teve com algum tipo de arte e essa referência o acompanhou pelo resto da vida. Claro que, muito além disso, existem todas as interpretações sobre o movimento pop-art, o consumismo, o modo de vida americano… Mas o meu ponto aqui é como suas obras, que podem parecer exteriores e, de certa forma, "banais", na verdade dizem muito sobre ele.
Sua série The Last Supper (1986) é definitivamente a mais pessoal para os analistas do documentário. É possível vê-la como uma mera encomenda de um galerista italiano de uma "última ceia pop", mas também é plausível entendê-la como um resgate dos símbolos religiosos tão caros à Andy, em um momento no qual tantas pessoas à sua volta estavam morrendo por causa da AIDS. Quase como um pedido de ajuda ou de perdão para Jesus. Andy faleceu um mês depois da abertura da exibição, em 1987. Para Claudia Schmuckli, curadora de arte, a série é "um híbrido de sagrado e profano, alta arte e design comercial. A irreverência aparentemente herética por essas distinções reflete a inevitável transformação de uma obra profundamente religiosa em um clichê cuja mensagem espiritual foi silenciada pela repetição" [2]. Ou seja, um perfeito fechamento para vida de Warhol, amarrando o seu íntimo, crenças, sentimentos e aflições com a sua máscara profissional e externa.
Assim, a série documental me fez de pouco conhecedora de Andy Warhol para uma grande apreciadora de suas obras e revoluções no mundo das artes. E, muito além disso, me fez identificar com a sua pessoa, com suas inseguranças, medos e até mesmo com seus cinismos. São seis episódios que me fizeram aprender muito historicamente, artisticamente e pessoalmente.
[1] Para mais informações, ler "Como Warhol apagou a identidade das pessoas trans negras que posaram para ele" em: https://amlatina.contemporaryand.com/pt/editorial/andy-warhol-black-trans-sitters/
[2] Tradução nossa: "a hybrid of the sacred and profane, high art and commercial design. The seemingly heretical irreverence for these distinctions reflects the inevitable transformation of a deeply religious work into a cliché whose spiritual message has become muted through repetition."
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