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Renato Murad

Do banco do passageiro

A gente rodava a cidade no carro dele. No caminho que atravessa de sul a oeste de

São Paulo a gente via o movimento da Avenida Paulista com um olhar algo

saudoso. Ele me perguntava: “Não acabou ainda, né?” E eu tinha muito pouco pra

dizer de volta. Tenho reagido de maneira quase catatônica ao mundo que me

rodeia. Deve ser a diminuição no consumo de álcool. Se fosse há alguns meses eu

provavelmente teria uma resposta lindíssima pra devolver; ou algo bobo; ou eu

apenas estaria apagado no banco de trás. Só saíram da minha boca alguns

vocábulos tristes: “Se acabou, fudeu.”


O deslumbre de jovem é algo que eu ainda tento entender. Tenho muito problema

em fazer aniversário; se possível manteria os sólidos 20 e poucos eternamente.

Síndrome de “Peter Pan”, alguns diriam. Eu acho que é bem pior do que isso.

Síndrome grega! Quando se envelhece para a pólis, quando o corpo fica feio, então

pouco resta a ser feito. Ainda segundo essa cultura, somos segurados pelos fios da

vida conduzidos pelas Moiras, três irmãs que projetavam o destino [Lembra do filme

da “Hércules” Disney, aquelas velhinhas que dividiam um olho só? Então, tipo

aquilo, só que menos espalhafatoso]. Quem envelhecia se aproximava de um

desfecho com as Moiras, que a qualquer momento podiam tentar ceifar a vida.


Sempre que a gente passeia de carro alguma coisa acontece. Dessa vez um carro

parou em paralelo no sinal fechado. Cruzamento com a Augusta. A pessoa do

banco de trás disse alguma coisa em voz alta e eu exclamei: “Oi?!”, de um jeito

quase acidental. Rimos porque logo depois o sinal abriu e eu fiquei morrendo de

vergonha. O som fica por minha conta. Tento impressionar com a coisa que vai

deixar o motorista com mais vontade de acelerar. Só que naquele dia estava difícil

romper com o silêncio. A gente não parava de comentar que tudo o que vinham

dizendo nos últimos bares, com os amigos cativos, dizia respeito ao passado; e as

canções que ecoavam a volume baixo não pareciam ter nome nem compositor

porque já integravam a paisagem soturna daquele final de domingo.


Aquela cena, tirando toda a parte desassossegada, era bastante comum. A

banalidade de me encontrar no banco do passageiro. Eu sempre sou o passageiro.

Não virei motorista por inabilidade, preguiça, dinheiro. Não me comprometer com

um carro, porém, me fez correr atrás de uma personalidade companheira ao lado de

quem dirige; aquele ou qualquer outro. Ofereço o entretenimento necessário para

não te fazer dormir ao volante. Nem chorar ao volante, espero eu - apesar de já ter

ocorrido algumas vezes. Assisto o mundo dali do banco à direita quase como um

narrador de romance, classicamente deslocado na história. O primeiro que me vem

à mente é um perfil como o de um Nick Carraway, de “O Grande Gatsby”. Ele

passeia por entre mansões, festas e dramas como eu passeio com os amigos

motoristas. Por um momento me escondo por detrás da máscara do passageiro e ali

permaneço calado, contemplando o protagonismo de outras pessoas.


Chegamos relativamente cedo nas proximidades de casa. Pedi pra ele parar ali do

lado pra gente jogar conversa fora na pracinha. Caía uma garoa muito fina e, de

longe, os gritos de jovens fumando quebrava com o eco de nossos próprios passos.

Pensava nas Moiras, conduzindo nossas vidas como marionetes, controlando

nossos passos com um caminho certo entre os dedos. Pensava que tudo havia de

ser movimento, sob o risco de parar para sempre. Sob o risco indescritivelmente

trágico de me resignar com a posição de passageiro, sem sequer ter tentado colocar

as mãos num volante.


E a garoa formava um véu. E a garoa não parava de cair, até que o carro estivesse

coberto de gotículas. E tivemos que nos cobrir com os blusões para não morrermos

de frio.

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