Em tempos pandêmicos, mais do que em qualquer outro tempo, há ideias que compartilhamos vivamente enquanto sociedade, saudades de hábitos que ficaram suspensos e ansiedades pelo que virá. Andar de transporte público, frequentar bares, ir a shows lotados, enfim, tudo o que envolva aglomeração. O Carnaval certamente é o período do ano em que todos esses elementos se conjugam de forma harmônica (ou desarmônica) e também um dos eventos que mais deixaram um vazio em diversos corações foliões.
E se você pensa que o exagero com bebidas e beijos é algo exclusivo da atual juventude, está deixando de lado a história dessa festa que não é tipicamente brasileira, mas que ganhou cor local ano após ano. O primeiro nome do Carnaval foi Entrudo, palavra que se relaciona com a ideia de “entrada”; não à toa, já que sua tradição se mistura com o paganismo medieval europeu, que celebrava a entrada na primavera, um rito de passagem de tempo. A Igreja, elemento preponderante da formação cultural da Idade Média, não deixaria de colocar o seu dedo na festa e faria dela o antecedente para a Quaresma, que é um período de silêncio, jejum e oração. Dessa forma, o Entrudo passou a ser um momento de desafogar os desejos e exageros antes do tempo de ficar calado para celebrar a vida e a morte de Jesus.
A famosa “quarta-feira de cinzas”, foi imortalizada como o primeiro dia da Quaresma, ganhando ao longo dos anos a fama de um dia triste e silencioso. Obviamente essa regra se subverte no Brasil, que teve em 2019, na cidade do Rio de Janeiro, mais de 10 blocos na quarta-feira de cinzas, incluindo o “Me Enterra na Quarta” do bairro de Santa Tereza. O conflito entre a moralidade, os valores cristãos conservadores e a folia do Carnaval será retomado inúmeras vezes na história brasileira.
Os primeiros registros do Entrudo no Brasil são do século XVII, quando a prática vinda da Europa causou confusões na Bahia e foi proibida pela primeira vez. É só com a independência, em 1822, que os brasileiros viram o Entrudo florescer plenamente. Isso se deu em parte pelo espírito de liberdade que circulava, em especial, nas castas mais altas da sociedade, mas também pela postura do Império de estabelecer datas festivas e eventos cívicos que levavam brasileiras e brasileiros cada vez mais para as ruas de suas cidades.
Legenda: “O Entrudo” – Jean-Baptiste Debret
Na segunda metade do século XIX, Salvador transformou-se na cidade-epicentro da celebração. Nessa passagem da casa para a rua, o Entrudo ganha ares de uma grande guerra de cheiros e sabores. Comidas especiais eram vendidas pelas “moças de tabuleiro”, que passavam no centro com quindins e cocadas. Embaixo dos doces havia um elemento também muito vendido naqueles dias festivos: bolas feitas de cera “recheadas” com água para serem atiradas naquela grande batalha a céu aberto. Ali, ainda que momentaneamente, havia certo equilíbrio entre classes, raças e gêneros, todos pintados de cores diferentes, se esquecendo por algumas horas de seus espaços sociais. Quando a festa acabava, contudo, os presos e castigados seguiam sendo os escravos baderneiros, as “moças de tabuleiro” que vendiam bolas de cera, as mulheres que fugiam da obrigação do lar. Assim como hoje em dia, aquelas pessoas deixavam de lado suas vidas, tentando fugir de sua dura realidade em troca de um pouco de diversão.
A repressão contra os subalternos era sempre exemplar e aos poucos o Entrudo se tornava inviável devido às punições e proibições do Estado. Em 1854, a festividade foi oficialmente proibida novamente. Entretanto, diante da espoliação do Império contra a expressão popular, grupos de escravos passaram a usar de suas referências rítmicas para compor blocos como o Embaixada Africana e o Pândegos da África, o primeiro de 1885 e o segundo de 1886. Essa musicalidade seria passada através de gerações, fundando uma manifestação cultural que perdura até os dias de hoje. O Entrudo não morreria tão facilmente.
Legenda: Marimba. Passeio de domingo à tarde. Jean-Baptiste Debret, 1826
Em 1884 a história dessas festas ganha novo capítulo. Em um caminho oposto ao dos grupos populares africanos que seriam fundados na mesma época, o imperador D. Pedro II decide oficializar o Carnaval. Novo nome. Novas classes. Novos termos. O Carnaval que se desenvolveria a partir dali tinha uma inspiração nas cidades europeias de Paris e Veneza. Muito mais refinado, ele receberia as presenças de ilustrados da corte, escritores, intelectuais e visitantes de todo o mundo. Novamente num paralelo com nosso tempo, seria interessante comparar com os desfiles de Escolas de Samba do Grupo Especial do Rio de Janeiro. Em uma rápida pesquisa, o ingresso mais barato que encontrei para o Carnaval de 2022 estava em 500 reais, 100 reais a mais do que parte dos auxílios emergenciais que o governo concedeu nos últimos meses de pandemia, ou seja, um valor impagável para muitas brasileiras e brasileiros.
À princípio o Carnaval se tornaria uma festa inacessível, mas com o tempo o espírito do Entrudo tomou conta dos foliões que não conseguiam ir aos chiques desfiles da corte. A reação que se viu na Bahia também foi extraviada para Rio de Janeiro e São Paulo. Pelas bandas do Sudeste o samba e as marchinhas foram a mistura típica que realçou o caráter popular dessa celebração. Hoje, o Carnaval é reconhecido como um Patrimônio Imaterial, um espaço de fuga cotidiana e ao mesmo tempo de encontro com os paradoxos brasileiros. Ainda há violência e desigualdade a serem notadas, mas quem sabe no caminho não se possa encontrar um pouco de paixão e beleza, não é mesmo?
Referências Bibliográficas:
DA MATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: Para uma sociologia do dilema brasileiro. 1a. ed. [S. l.]: Editora Guanabara, 1990.
OLIVEIRA, Paulo Cezar Miguez de. Carnaval baiano: As tramas da alegria e a teia dos negócios. Orientador: Dra. Tânia Fischer. 1996. 237 p. Tese de Doutorado (Graduação da Escola de Administração) - Universidade Federal da Bahia, Salvador, 1996.
SCHWARCZ, L. As Barbas do Imperador. São Paulo, Ed. Cia das Letras, 1999.
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