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Renato Murad

Dois Beijos


“O Beijo”, fotografia de Alfred Eisenstaedt tirada em 1945 após o fim da Segunda Guerra mundial. FONTE: LIFE Picture Collection

Julio Cortázar em seu célebre texto “Alguns aspectos do conto” (2006) afirma que o cinema se aproxima de um romance na mesma medida que a fotografia se aproxima do gênero que o consagrou: o conto. Ele atribui isso ao fato de que a foto, quando pensada e planejada, trabalha com um espaço limitado de comunicação, tal qual o conto, que tem por natureza a sua forma breve e essencial. Grandes contistas como Jorge Luis Borges, Edgar Alan Poe ou Clarice Lispector carregam consigo o peso de serem bastante sucintos ainda que geniais: não se pode retirar uma palavra sem sequer alterar o sentido, tudo é essencial.


Da mesma forma, a fotografia é um lampejo que a câmera proporciona num momento oportuno (ou inoportuno). Também ali cada elemento possui a potência das palavras em um conto, com a diferença que no recurso escrito sempre se pode dar maior especificidade ao tom, mais objetividade ao narrador. Na foto tudo a subjetividade do simbólico fica à mercê do olhar cada vez que a imagem é revisitada, seja em aspectos internos (as partes, os planos, quem está mais à frente e quem está mais atrás, o que está no centro, etc...) seja nos aspectos externos (a historicidade e autoria da foto).


A foto de Alfred Eisenstaedt que aparentemente retrata um beijo após a vitória americana na Segunda Guerra Mundial é um exemplo de como esses aspectos internos e externos são essenciais para o “conto que a foto conta”. Uma imagem reproduzida em diversos posters, em esculturas e performances vive uma contenda enquanto fonte histórica: esse beijo foi consensual?

Dezenas de casais recriam célebre cena de beijo na Times Square. FONTE: G1 (2015)

Os protagonistas do registro de Eisenstaedt foram identificados com a curiosidade e com o tempo discorrido: ele, George Mendonça, um marinheiro recém-chegado da Europa; ela, Greta Friedman, uma assistente de dentista que passava pela rua para celebrar a paz. Paz. Essa foto através de um beijo heterossexual no meio da rua se tornou símbolo de paz. Greta e George chegaram a se reencontrar, já idosos, no mesmo local onde foram centro das atenções das lentes de Eisenstaedt.


A fotografia permaneceu em um lugar imaculado por anos até que, após uma série de depoimentos dos próprios participantes da cena, passou a ser condenada por reproduzir e romantizar um beijo não consensual. Tornando à analogia que abriu essa reflexão, agora se utilizando das ideias de Ricardo Piglia em “Teses sobre o Conto” (2004), toda narrativa apresenta duas histórias que apresentam algo oculto. Sem analisar nenhum aspecto externo dessa fotografia seria difícil prever a análise do beijo forçado. Por mais que se repare, como alguns tendem a dizer que o movimento feito por Greta com o corpo é de resistência ao beijo de George, a ideia do abuso fica muito abstrata apenas pela foto. Além disso, o fotógrafo da LIFE soube muito bem aproveitar o momento. A distribuição de elementos dentro da imagem é bastante contundente, bem como a centralidade do casal, constituindo uma equilibrada mise en scene[1]. Há que se recorrer à historicidade para achar a “segunda foto”, ou melhor, a “segunda história”.


George conta no livro “The Kissing Sailor” que havia bebido demais naquele dia e que sequer se recordava de ter beijado Greta. Outro ponto considerado polêmico por trás da foto é a própria postura de Eisenstaedt, que, segundo outros fotógrafos da mesma revista, teria agarrado à força uma jornalista no mesmo dia. É fundamental balizar as visões, compreendendo que essas minúcias têm muito a ver com as demandas das ciências humanas do tempo presente. A romantização dessa imagem ao longo dos anos não foi um erro moral de quem a viu assim, foi na verdade um olhar de quem teve acesso apenas a uma das fotografias: aquela restrita à superfície do conto.


Le Baiser de l’Hôtel de Ville, Robert Doisneau (1950). FONTE: BBC

Melhor seria recordar de uma segunda foto, tão repleta de interpretações e iconografias quanto a primeira, ainda que um pouco mais tímida. O beijo representado por Robert Doisneau revela outra visita ao ato, muito menos estrambólica do que a imagem americana, hipérbole para o fim da guerra. Longe desse ambiente, capturada no cotidiano parisiense, a foto de Doisneau pode ajudar a rever a de Eisenstaedt. A doçura com que ela se executa é bastante diferente da primeira imagem aqui apresentada. O movimento não está no primeiro, mas sim no segundo plano; o casal congelado no tempo, parece nem notar o caos urbano que se amontoa ao seu redor. Fico me perguntando como seria se Greta pudesse ter escapado de um bêbado de Nova York e ter se teletransportado para as ruas de Paris, para o anonimato de um beijo que não é acessório ao fato histórico como em 1945, mas sim parte integrante.



[1]Mise en Scene: Termo que vem do universo do teatro e do cinema para descrever a distribuição de atributos cênicos em uma obra.


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