A colorida, frenética e transparente Seul contrasta com a preto e branca Berlim, com sua conservação do passado e seus vazios. Um filósofo coreano que mora na Alemanha caminha entre os sentidos das duas cidades. “Sociedade do Cansaço: Byung Chul Han em Berlim/Seul” (2015) é um filme de Isabella Gresser, uma artista visual e cineasta que possui grande apreço pelo uso das tecnologias na arte. Sua intervenção no filme caminha no sentido de trazer recursos audiovisuais para ilustrar, na forma de cinema-ensaio, as ideias do filósofo Byung-Chul Han. No filme, o autor se detém mais no universo de Seul (uma “sociedade do cansaço em estágio avançado'', segundo ele), narrando e conduzindo o ritmo da direção de Gresser, colocando até mesmo uma parte de sua trajetória pessoal em contato com sua teoria.
Numa determinada cena, o transporte público coreano é retratado em meio à barulheira do cotidiano, enquanto seus passageiros utilizam daquele tempo para dormir, já a caminho de suas casas. Este trecho interage diretamente com a fala de Han, ainda no começo do filme, quando caminha pelas ruas de Berlim: “Penso que hoje os ruídos digitais dos meios de comunicação deslocam sempre o silêncio e o vazio”. A falta do vazio é um tópico retomado na trilha sonora do documentário quando Han decide apresentar um universo religioso, repleto de tambores e de silêncio, em contraste com o cotidiano do trabalho, em Seul.
Esse trabalhador que volta nos “vagões-leito” para casa e que tende ao burnout, à depressão, à ansiedade, não está sofrendo de uma exploração que vem de fora, mas sim de sua “autoexploração”. Suas metas não são definitivas, sempre há como esticá-las um pouco mais, e as consequências para a falha, o erro, a lacuna, são a culpa e a carência. A obediência não é mais necessariamente o valor a ser cumprido, mas sim o desempenho, a superação de si mesmo. Tanto no documentário quanto em sua obra, o autor faz a mediação das diferenças entre a Sociedade Disciplinar de Foucault, marcada pelos muros e pela repressão direta no sujeito, e a Sociedade do Desempenho, que se caracteriza pelo uso da liberdade para exercer o poder e o controle. À priori, causa estranhamento pensar que a liberdade, pilar característico do projeto de civilização da sociedade ocidental, falhou. Han explica: “A dialética misteriosa da liberdade transforma essa liberdade em novas coações. A falta de relação com o outro [que dá as ordens] provoca acima de tudo uma crise de gratificação”. Assim, a pressão por resultados tem levado jovens coreanos às noites com menos de 6h de sono, ao afastamento de seus relacionamentos e de sua sociabilidade, ao suicídio. O filósofo chega a especular durante o filme, numa hipérbole da autoexploração, que no futuro será possível trabalhar dormindo.
O grito de “Sim, podemos!” (ou “Yes, we can!”) também se baseia na liberdade, no “tá tudo no mindset, é só querer” (citando aqui a famosa frase do tik-toker “O Milionário”, ou @gui.raya, que faz graça justamente com a ideia de que, independente das condições em que nasceu, a pessoa é capaz de atingir o sucesso financeiro). Aqui, a característica afirmativa da frase acaba por ressaltar outra questão importante da obra de Han: a transparência. Voltemos à cena do transporte público. Gresser faz questão de, além dos ruídos distorcidos que permeiam a trilha, colocar um anteparo visual entre a câmera e os passageiros. Uma espécie de vidro que intercepta a filmagem e coloca reflexos de movimentos na tela. A sobreposição de imagens feitas pela diretora têm a função de jogar com a “transparência” no sentido literal, enquanto no sentido figurado, Han se utiliza da palavra para tratar de uma sociedade positiva, iluminada e nua.
A hipercomunicação e a hiperinformação sem um sentido claro e sem espaço para a negatividade se tornam máximas dentro da Sociedade da Transparência. A comunicação deixa de ser um espaço de liberdade para se tornar um espaço de vigilância. Plataformas digitais como o Google (um espaço de obtenção de informação ilimitada) e as redes sociais (que pretendem acelerar o curso do tempo, poupar distância, nos manter em constante comunicação e conexão com nossos pares) assumem uma forma panóptica. No documentário o meio pelo qual Gresser expressa essa imagem chama a atenção: uma ilustração da própria cineasta de grandes smartphones cercados por altos muros e torres de controle que vigiam atentamente os presos numa espécie de pátio, as telas. Já a respeito da informação, Han afirma: “Não é raro que a negatividade do abandonar e do esquecer tenha um efeito produtivo. A sociedade da transparência não tolera lapsos de informação nem lapsos visuais, mas o pensamento e a inspiração necessitam de um vazio”.
O filme, apesar de não ser muito movimentado, prende a cada palavra do filósofo, que é extremamente eloquente. Aliado ao interesse pelas palavras, aquele que assiste à “Sociedade do Cansaço” assiste a uma obra de arte audiovisual, uma viagem entre cores e sons. Se esses fatores ainda não convenceram, vale ressaltar a pertinência da obra no tempo em que vivemos. As jornadas de trabalho intermináveis, combinadas com estágios, graduação e ainda o sustento financeiro. Uma nova lógica de autonomia que tira a responsabilidade do outro e a coloca totalmente sobre nós. É o novo capitalismo que, sob a casca da liberdade, acaba sendo muito pior.
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