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Maria Fernanda Reis Celso Magaldi Borges

Elza Soares e o legado da mulher


Elza Soares, a nossa melhor voz do milênio, faleceu no dia 20 de janeiro de 2022. Ela foi uma mulher preta, favelada, carioca da gema, criada na Vila Vintém[1], feminista, multi premiada, dona de uma carreira de mais de 60 anos ativos e de uma história de vida trágica, em vários momentos, intensa e linda, em muitos outros. Elza foi o que quis ser e transformou sua intensa vivência em música, arte e luta.


Uma cantora que não parou de cantar, que precisava e não tinha medo de cantar, que tinha necessidade de contar a sua história, fosse pela música ou pela fala, que usava de suas dores e suas vivências não só como poesia, mas como artifício de luta, tendo uma história profundamente marcada pelo racismo, pelo machismo, pela violência contra a mulher e pela pobreza. Foi uma porta-voz da luta das pessoas negras, mulheres, pessoas LGBT e pessoas pobres contra a violência da sociedade brasileira.


Uma mulher forte, efervescente musicalmente e como indivíduo, que nunca deixou de estar à frente do seu tempo, de ser pioneira e demonstrar como a sociedade brasileira é violenta, moralista e atrasada. Por isso, sofreu fortes represálias, principalmente antes de se consagrar como uma grande artista. Ainda assim, não tinha medo do que fosse dito sobre ela e respondia com sua personalidade forte, sem papas na língua.


Para ilustrar Elza, é possível lembrar de sua primeira aparição, em 1953, no programa de rádio “Calouros em Desfile”[2] de Ary Barroso[3]. Após ser ridicularizada pelo apresentador por conta de suas roupas simples, ela respondeu à pergunta “de que planeta você veio?”com uma frase marcante (que viraria nome de álbum anos depois [4]): “do mesmo planeta que você, Seu Ary, do planeta fome”.

Só nesse fragmento inicial de sua imensa carreira, Elza Soares mostrou o que viria pela frente, demonstrou ter consciência e não vergonha da situação de pobreza em que se encontrava à época. Aos 21 anos, já viúva de um casamento do qual foi vítima na infância, era mãe, com dois filhos falecidos pela fome e uma filha desaparecida. Suas dificuldades não a moldaram, mas eram parte dela, ela era brilho e dor, luz e sombra, fome e glória.


Seu espírito deixou o corpo, mas sua passagem pela terra trilhou um legado que marcou a história da música para sempre. Elza Soares caminhou por muitos gêneros musicais: MPB, samba, jazz, soul, rock, eletrônica, etc. Não dá para pensar em música sem pensar nela, cantora em constante reinvenção, procurando novas formas de se expressar, de fazer sua voz ser ouvida, de ocupar espaços e levar consigo as lutas que a tocavam.


Existem poucos artistas com uma carreira tão extensa quanto Elza Soares. Desde o lançamento de seu primeiro álbum, “Se acaso você chegasse”, em 1960, ela conseguiu o impressionante feito de lançar álbuns em todas as décadas seguintes: 60, 70, 80, 90, e nas duas décadas que se estendem os anos 2000, totalizando 35 álbuns com temáticas e estilos tão diversos quanto sua vida. Ter a vida documentada em som não é para qualquer artista.


Foi no samba que começou e se destacou, contando com boa parte da sua discografia dedicada ao ritmo. Podemos destacar, entre seus álbuns dedicados ao ritmo: “A Bossa Negra” (Odeon, 1960) – mistura de samba e bossa-nova, que conta com a participação de Tom Jobim, João Gilberto e Nara Leão, grandes nomes da música brasileira –, “Sangue, Suor e Raça” (Odeon, 1972) – quecanta junto com Roberto Ribeiro, na época novato, por quem teve de lutar na gravadora contra o racismo para colocá-lo na capa do álbum –, “Voltei” (RGE, 1988), que marca sua volta para o Brasil após quatro anos morando no exterior para lidar com o luto da perda de seu terceiro filho, contando com composições de Arlindo Cruz, Sombrinha, Jorge Aragão e outros grandes sambistas dos anos 80.

Entretanto, foi no experimental, na mistura entre diversos ritmos – como o rap, o rock e o eletrônico – que a cantora da voz rasgada trouxe ao mundo seus álbuns mais potentes e fortes, tanto em mensagem quanto em musicalidade. Seus últimos álbuns, todos atualíssimos, trazem reflexões sobre a vida de Elza, a realidade da mulher preta na sociedade, a pobreza brasileira, a violência, a morte, o fim, a memória e o legado, o seu legado. Os álbuns “A mulher do fim do mundo” (Circus, 2015), “Deus é mulher” (Deck, 2018) e “Planeta fome” (Deck, 2019) são uma carta de amor e de respeito de Elza para Elza, de reconhecimento da própria história e da própria força, de quem sabe que é a voz do milênio, uma cantora enorme, de quem sabe o que é ser Elza Soares.


Essa introdução não conta nem metade do legado de Elza, é um recorte superficial da filha de Iansã, a verdadeira mulher do fim do mundo. A biografia sobre ela, escrita pelo jornalista Zeca Camargo, tem mais de 300 páginas e demorou mais de um ano para ser escrita. Gigante, Elza Soares é eterna, sendo consagrada imortal pela Academia Brasileira de Cultura[5], em dezembro de 2021. Também foi enredo de escola de samba 3 vezes (2012, 2013 e 2020) e tema do filme “My Name is Now” (2018), da diretora Elizabete Martins Campos, premiado pelo Grande Prêmio do Cinema Brasileiro[6] como a melhor trilha sonora original e melhor filme documental.

Tendo sido tão importante e, independente, não há sentido nenhum no tema da primeira produção após sua morte: sua relação com Mané Garrincha[7]. A série documental produzida pela Globoplay, "Elza e Mané – Amor por Linhas Tortas", contará sua história com o jogador de futebol, seu marido por 16 anos; alcoólatra, Mané morreu em 1983 de cirrose hepática.


O relacionamento dos dois foi extremamente conturbado, Elza sofreu muito: violência física por conta do alcoolismo do jogador, violência moral pelas diversas traições públicas que ele cometia, assédio pela imprensa moralista que a detonava por ter sido amante dele por um curto período antes de se casarem, dor pela perda da mãe num acidente causado por ele. Apesar de tudo isso, ela nunca negou que o amava e afirmou diversas vezes que ele foi o grande amor de sua vida.


Não há problema em lembrar de Garrincha como um amor de Elza, mas existe algo errado em limitá-la a isso, em seus relacionamentos amorosos serem o primeiro aspecto da sua vida a serem documentados após sua morte, uma mulher que teve uma carreira profissional tão grande, foi tão influente e viveu tanto. Em entrevista ao jornalista e apresentador Pedro Bial no programa Conversa com o Bial em 2018, Elza revelou que não gostava de ser chamada de a mulher de Garrincha, pois, não era mulher de ninguém e que tinha considerado muito se falaria ou não de Garrincha em sua biografia. A fala da cantora diz muito sobre como o peso das relações românticas é diferente para homens e mulheres: a mulher pode ter sido extraordinária, mas os homens que passaram por sua vida são sempre dignos de nota, enquanto as mulheres na vida de um homem, por mais relevantes que sejam, são apenas pequenos pedaços de uma história.


É problemático também pensar no porquê de retratar uma fase tão sofrida da vida de uma mulher tão forte. Por que colocar a figura de Elza, que já superou tantas violências, novamente no papel da mulher ferida, que sofreu por amor? Suas últimas falas, atos e músicas trilham o caminho contrário dessa narrativa, então por que voltar a isso? A quem vai agradar? Qual o grande fetiche em ver mulheres fortes sofrendo? Por que a vida amorosa e sexual de uma mulher tem mais destaque do que sua carreira?

Como não há respostas para essas perguntas, deixo a recomendação dos últimos trabalhos de Elza Soares, “A Mulher do Fim do Mundo”, “Deus é Mulher” e “Planeta Fome”, para relembrar seu legado e as ideias que ela gostaria de passar para outras mulheres.






[1] Vila Vintém é uma favela do bairro de Padre Miguel na Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro.

[2] Calouros em Desfile foi um programa de rádio brasileiro que começou em 1937, apresentado por Ary Barroso, os “calouros” eram amadores no canto que deveriam cantar músicas brasileiras e eram gongados.

[3] Ary Barroso (1903-1964) foi um compositor brasileiro, autor de "Aquarela do Brasil".

[4] Planeta Fome é o 34° álbum de Elza Soares.

[5] Fundada em 2021, a Academia Brasileira de Cultura é uma liga que homenageia artistas que lutam para manter viva a cultura brasileira.

[6] Grande Prêmio do Cinema Brasileiro é o prêmio mais importante do cinema brasileiro, outorgado anualmente pela Academia Brasileira de Cinema

[7] Mané Garrincha foi um futebolista brasileiro que se notabilizou por seus dribles desconcertantes, sendo considerado por muitos o mais célebre ponta-direita e o melhor driblador da história do futebol.



Referências bibliográficas:

Portal Jus-Brasil “A Cantora do Milênio é Mulher, Negra, Brasileira e Feminista: Elza Soares” por Aria Rita em 2018: https://portal-justificando.jusbrasil.com.br/noticias/273310548/a-cantora-do-milenio-e-mulher-negra-brasileira-e-feminista-elza-soares

Entrevista Elza Soares para Pedro Bial com participação de Zeca Camargo: Elza Soares lembra relação com Garrincha: 'O amor da minha vida foi ele' por Gshow em 20/06/2018: https://gshow.globo.com/programas/conversa-com-bial/noticia/elza-soares-lembra-relacao-com-garrincha-o-amor-da-minha-vida-foi-ele.ghtml

Coleção Folha Raízes da música popular Ary Barroso:

Revista Claudia: ‘Planeta Fome’: a história surreal por trás do novo álbum de Elza Soares por Júlia Warken em 15/01/2020:

G1: Elza Soares deixa discografia que sintetiza 60 anos de música brasileira em 35 álbuns por Mauro Ferreira em 21/01/2022: https://g1.globo.com/pop-arte/musica/blog/mauro-ferreira/post/2022/01/21/elza-soares-deixa-discografia-que-sintetiza-60-anos-de-musica-brasileira-em-35-albuns.ghtml


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