“Lousa: espaço vazio que é preenchido com algo. Tablet: espaço cheio de onde se deve extrair algo.”
Não posso considerar a “afirmação-ponto-de-partida” deste ensaio como algo original, já que qualquer pessoa que lê “A arte de reduzir as cabeças” de Dany-Robert Dufour chega à conclusão de que as salas de aula têm se reduzido a um mero instrumento do neoliberalismo e que as telas têm sido a porta de entrada para este mal.
Não há motivos para o uso de uma linguagem menos dura neste tópico. Atualmente, já na primeira infância, as crianças ganham ou têm acesso permitido pelos pais a celulares, tablets ou videogames [1]. Tais dispositivos - usados quase sempre para calar o barulho de um choro, conter a ansiedade, distrair ou entreter - acabam sendo as próprias figuras de autoridade daquele indivíduo. O problema é que os aplicativos, vídeos no YouTube e as redes sociais são complexos softwares construídos por grandes empresas como a Alphabet (desenvolvedora do Google) e a Meta (associada ao Facebook e a outros aplicativos). A intenção dessas organizações reflete o novo mote do mercado internacional: o rastreamento de dados. Por trás de cada autorização requerida por um aplicativo, reside um fino conjunto de códigos que tem a intenção de satisfazer o usuário ao máximo dentro daquilo que acredita ser de seu interesse.
Os pais perdem a disputa para esses programas na medida em que os filhos não conseguem confiar mais em sua autoridade enquanto orientação. A extensão desse processo acontece na escola, que, dentro de uma lógica bancária (emprestando as palavras de Paulo Freire), é colocada em posição subordinada aos interesses do mercado e, por consequência, das tecnologias.
Nesse contexto, vale aqui uma diferenciação importante entre renovação e inovação. A primeira é uma afirmação da necessidade de mudança através de planejamento, estratégia e pesquisa. Renovar a educação é um imperativo dentro do contexto neoliberal que se acoplou ao setor, algo muito diferente do segundo vocábulo. Quando se fala em inovação, geralmente a abordagem é muito mais relativa à aparência das coisas do que a sua praticidade em si. Inovar o conceito de um Iphone, por exemplo, é recriar o mesmo objeto com alterações tão minuciosas que quase podem ser chamadas de inúteis. Uma escola viciada em inovação não se preocupa com a finalidade das tecnologias que emprega, mas sim, com a venda de uma imagem, com a grife estampada sob o nome da modernidade.
Qual é a real qualidade do uso de um tablet em sala de aula? Não se nega que o mundo digital é irreversivelmente parte do nosso universo. Ainda assim, a sensação que as escolas atualmente passam é de que quase nada foi calculado neste âmbito. Trocar o caderno pela tela como um simples fetiche da modernização pode não gerar bons frutos. Isso ocorre sem justificativa pedagógica porque a intenção é muito mais ideológica do que técnica. “Devemos nos modernizar para não ficar para trás no mercado de trabalho”.
Ainda que haja muitas contradições, Hannah Arendt passa uma visão de grande valor no campo do ensino em seu livro “Entre o passado e o futuro”. Neste trabalho, ela afirma a necessidade de apresentar um mundo “velho” às crianças com a finalidade de inspirar os seus próximos passos. Dentro da lógica de Arendt, é impossível fazer o “novo” sobre um vácuo inexistente. É conservador e quiçá tradicionalista, mas ainda assim necessário, em um tempo em que esse tal “futuro” é vendido como a última bolacha no pacote, ainda que seja irrealidade.
As distrações das coloridas luzes de uma tela acabam roubando um espaço que antes pertencia às narrativas. Este talvez seja o encaminhamento mais necessário diante da situação (não como solução, mas como possibilidade). Nos apoiemos em Walter Benjamin, um historiador e grande escritor da temática da educação. Em “O contador de histórias”, ele revela que a ausência da oralidade em seu tempo (meados do século XX) já trazia danos irreparáveis. A comunicação parece entrar em conflito em uma contradição mediada entre liberdade e controle. Nossas falas, nossas fotos, nossos dados, estão todos em exposição constante nas redes sociais. Não há como eliminar essa nova dimensão da linguagem que não acontece mais num espaço físico, mas sim em um lugar imaginário, etéreo. A oralidade a qual Benjamin se referia desaparece em definitivo para dar lugar ao internetês, com seus próprios ritos e um excesso de informação constante.
A lousa é deixada de lado. Agora tudo o que precisamos está ao alcance do toque. As crianças se sentem livres, com o mundo em suas mãos e, ao mesmo tempo, nunca estiveram tão presas. É muito difícil se salvar desse dilúvio de estímulos que o mundo digital nos proporciona. Um retorno ao passado é necessário, ainda que soe antiquado. Até mesmo a autoridade (antes tão criticada por beirar o autoritarismo) deve voltar a ser a palavra falada e não a digitada. Recuperar a oralidade, salvar-se da vertigem das telas, parece tarefa impossível, mas cabe justamente aos professores e professoras do novo tempo estudar todo o conteúdo possível sobre a cultura digital, a fim de aprender a conviver e diminuir os efeitos da corrosão progressiva da educação.
[1] Aqui vale uma importante ressalva a respeito da dimensão da classe. Em um dado momento era possível afirmar que o acesso a smartphones, por exemplo, era limitado às classes médias e altas. De acordo com pesquisa do Pnade Contínua e do IBGE de 2016, 92% da população brasileira possui pelo menos um dispositivo como esse em suas casas. Gradualmente esse acesso se massifica e o problema destacado no texto se alastra.
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