Até as primeiras décadas do século XX, a educação escolar possuía uma forma bastante direta de lidar com os problemas de um estudante: se havia desvio de comportamento, o destino era a sala da diretoria; se havia desvio de aprendizagem, o destino era a aula de reforço. O professor detinha todo o conhecimento debaixo de seu giz e ficava no topo de um palanque, de onde ostentava a clara superioridade em relação aos alunos. Quem entrasse neste tipo de sala de aula também repararia no crucifixo colocado na parede. Tópicos que hoje parecem óbvios para a ciência da educação como democracia, psicologia e universalidade não estavam disseminados no espaço escolar.
Os ventos começaram a mudar quando o movimento da Escola Nova se estabeleceu, através de pensadores e pensadoras como a italiana Maria Montessori, o norte-americano John Dewey, o francês Célestin Freinet e, anos mais tarde, o brasileiro Anísio Teixeira. A laicidade, a proatividade e o estudante como centro do processo de aprendizagem passaram a ser o foco dessa nova filosofia da educação. Psicologia e pedagogia passaram a caminhar lado a lado. Desenvolvimento, aprendizagem e adaptação perpassam o casamento dessas duas ciências, que propagaram o behaviorismo [1], a psicanálise e os métodos piagetianos pelas salas de aula.
Apesar da proposta progressista, a Escola Nova enfrentaria muitas questões. A cientifização da psicologia transformaria os alunos de uma escola em ratos de laboratório, respondendo a reforços positivos e negativos (pautados nas teorias behavioristas). O controle do comportamento ocorre através dos méritos ou deméritos. O exemplo clássico é o da estrelinha colada na prova mais bem feita, ou a medalha de “honra ao mérito” para estudantes que se destacaram dos demais.
O construtivismo de Piaget também encontraria obstáculos já que, tendo uma visão extremamente lógica, partindo de um conhecimento prévio para só então agregar algo de novo, seu método deixava de lado a experiência de cada aluno. Piaget, que privilegiava esse universo lógico em detrimento da exploração, da leitura do mundo antes da leitura da palavra.
As soluções para as críticas à Escola Nova viriam de muitos lugares, inclusive da própria psicologia, entretanto, não há maneira de seguir com essa trajetória histórica sem ao menos citar a presença de Paulo Freire nesta revisão de metodologias. Ele foi o responsável por colocar a experiência como grande criadora de sentido dentro do educando. O que uma palavra representava para o indivíduo sendo alfabetizado, por exemplo. O princípio de Freire foi introduzir o raciocínio em uma narrativa, uma reviravolta marcante para a trajetória do ensino e da aprendizagem.
Gradualmente, essas estruturas começaram a ruir. Não falamos mais em objetivos, falamos em metas a serem batidas. Os processos e estruturas do ensino foram substituídos por uma lógica e um vocabulário bancário, usando palavras de Freire. Poderíamos avançar alguns anos além da compreensão do educador falecido em 1997 e falar em uma lógica empresarial e financeira de organização do ensino neoliberal.
Por outro lado, não vemos mais os alunos dentro de suas singularidades e, às vezes, esquecemos seus nomes para lembrarmos de outros: “este aqui tem déficit de atenção; aquele tem hiperatividade; este outro tem ansiedade; e mais outros dois com dislexia”. Ou seja, a aprendizagem foi gradualmente substituída pelos médicos, em especial pelos psiquiatras. A fim de manter uma sala calada e atenta, medicam as crianças sob a tutela dos pais e tornam muito mais simples o trabalho da coordenação e dos professores. Na contramão, estão drogando indivíduos que nem sequer possuem juízo para entender o que os acomete, cortando suas personalidades, absorvendo sua energia, repreendendo sua expressividade.
Não devemos negar a existência de tais questões. Muitas delas são reais e merecem, de fato, a atenção da família e da escola. Ainda assim, a medicação deveria ser somente a solução final para os problemas estabelecidos. O maior dos “pontos de interrogação” criados em cima dessas novas nomenclaturas para os distúrbios envolvendo o comportamento em sala é o TOD (Transtorno Opositor Desafiador). A própria palavra “desafiador” no nome da patologia denota o uso de uma arbitrariedade para definir aqueles que a têm. Procurando rapidamente entre sites de hospitais e institutos de medicina, encontramos que seus sintomas são: comportamento argumentativo e desafiador, agressividade, índole vingativa, impulsividade, irritabilidade, comportamento antissocial. Ora, não seriam essas as características de qualquer criança ou adolescente? Desafiar, argumentar, irritar-se, etc. não são parte de um conjunto de atitudes comuns até mesmo (e especialmente) a adultos?
A financeirização e a patologização do espaço escolar prejudicam em diversas instâncias o que há por vir na trajetória do ensino e da aprendizagem. O psicólogo foi substituído pelos remédios e a organização escolar pela organização empresarial. E tantas vezes ouvimos que a escola tem sido a mesma há séculos, que nada mudou. É muito raso parar por aí. Certamente, o conservadorismo de outros tempos já se foi. O ensino não é mais confessional e nas aulas de ciência não é preciso estudar a origem do mundo através do Gênesis. Contudo, as coisas da modernidade, da tão tecnológica e sonhada “escola ideal” são tão melhores como se imagina?
Busquemos a criticidade e coragem de Oscar Freire para enfrentar os tempos que se aproximam. É apenas dentro do seu resgate e de outras referências de relevância, para a trajetória da história da educação, que será possível enxergar a possibilidade de mudanças no prenúncio de um futuro tão catastrófico.
[1] behaviorismo: Teoria psicológica que se baseia na observação do comportamento. Dentre as diversas abordagens da psicologia é a que faz uso da linguagem mais objetiva e científica.
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