A questão da ocultação de cadáveres para a proteção dos vivos pode ser compreendida como uma das primeiras práticas socioculturais adotadas pelos seres humanos, contando com diferentes práticas e ritos de acordo com cada sociedade (NOGUEIRA, 2012, p. 82). Da mesma forma, as práticas funerárias vão se transformando com o passar do tempo, motivadas pelas necessidades conjunturais de cada época, adaptando-se a cada contexto histórico. Assim, a partir de meados do século XVIII, houve uma intensificação das críticas contra os sepultamentos realizados nas igrejas, por parte dos discursos médicos que alertavam os efeitos nocivos desse tipo de inumação[1], principalmente na França. Esses discursos tinham como referencial a teoria miasmática, formulada ao longo do século XVII, que acreditava que o miasma – exalação de gases dos cadáveres em putrefação – era prejudicial à saúde e disseminava doenças, sendo atribuído à insalubridade do meio urbano. A solução seria destituir os sepultamentos das igrejas e os situar em áreas mais afastadas do núcleo urbano, segregando os mortos do ambiente dos vivos. Obviamente, essa transição gradual do destino dos mortos da Igreja para o âmbito público enfrentou reações adversas, principalmente em países católicos, consolidando-se, com dificuldades, no século XIX (FIGUEIREDO, 2020, pp. 53 - 58).
No Brasil, de herança e vivência colonial portuguesa, os sepultamentos eclesiásticos eram concedidos apenas aos católicos, proibindo estritamente um vasto grupo de terem seus corpos enterrados dentro ou ao redor da igreja, como os judeus, infiéis, excomungados e até mesmo as crianças que não foram batizadas.
Mesmo entre os fiéis havia uma clara divisão de onde os corpos seriam dispostos, seguindo uma hierarquia na qual aquele que tinha mais privilégios era colocado mais próximo ao altar, no corpo da igreja, enquanto os que possuíam menos ou nenhum prestígio, como os escravizados, eram postos na área externa à igreja, ou apenas deixados ao acaso. Pensando nas necrópoles[2] como uma continuação da vida social, desde o período colonial até a contemporaneidade, as distinções póstumas marcaram as formas de sepultamento dos indivíduos, refletindo as condições de quando o falecido vivia. O professor do departamento de História da Universidade de São Paulo (USP) João Paulo Pimenta, em sua obra O livro do tempo: uma história social (2021), ao compreender a morte como reprodução social de desigualdades, afirma que os cemitérios, desde o final do século XVIII e na sua disseminação generalizada a partir de 1850, “sempre carregaram hierarquias sociais, seja nas diferenças dos túmulos, de inscrições ou de lugares específicos dentro do próprio cemitério” (PIMENTA, 2021, p. 421). Pimenta também relembra as distinções dos sepultamentos eclesiásticos: a localidade do corpo enterrado - dentro ou fora da igreja - diferenciava o prestígio, assim, quanto mais perto do altar maior era a importância da pessoa em vida, que também vai se refletir na morte. Por fim, o autor referencia Gilberto Freyre, que via nessas hierarquias a dualidade de dominação expressas na arquitetura: casa grande e senzala – jazigos e covas rasas.
Como exemplos mais contemporâneos das desigualdades póstumas, iremos analisar o caso de dois cemitérios paulistas: o Cemitério da Consolação, localizado na cidade de São Paulo, e o Cemitério Municipal de Diadema. Para compreender o primeiro, foi utilizada como base teórica a obra O cemitério da Consolação: uma encantadora cidade dos mortos (2020), da doutora em geografia Olga Maíra Figueiredo. Atualmente, essa necrópole só possui jazigos perpétuos (Figura 1), marca da elite, entretanto, no início, recebia falecidos de todas as classes. Seu funcionamento se deu às pressas, em 1858, em meio a uma epidemia de varíola, sendo benzido e operante antes mesmo da inauguração, estando ainda inacabado. Sua abertura para toda a população aconteceu oficialmente em 15 de agosto de 1858, mas ainda apresentava condições bastante insalubres de funcionamento, sendo alvo de muitas críticas e apelidado, pejorativamente, de cemitério dos brutos. Começou a operar ainda no período da escravidão, recebendo os corpos tanto dos senhores como de seus escravizados, mas possibilitou que ambos fossem inumados no mesmo lugar. Porém, com a abertura de novos campos dos mortos, o Cemitério da Consolação foi se distanciando de suas origens e aqueles corpos oriundos de classes mais baixas foram sendo seletivamente esquecidos. Durante a disputa pela Memória, “[...] esses grupos mais desfavorecidos socialmente foram apagados da necrópole, não restando, atualmente, nenhuma marca visível de que algum dia o Consolação serviu para o sepultamento dos mais pobres e escravos.” (FIGUEIREDO, 2020, p. 73). De cemitério dos brutos ao monumento da elite cafeeira, o processo de elitização do cemitério acompanhou o rápido desenvolvimento da cidade, marcado pelo crescimento econômico e demográfico. Durante os anos finais do século XIX, o município viu a necessidade da criação de novos cemitérios municipais para conseguir suprir as novas demandas, pois a necrópole da Consolação já não conseguia mais se expandir no mesmo ritmo da agora movimentada São Paulo. Nessa segunda fase do cemitério, principalmente através da arte, ele foi reconhecido como o lugar de expressão dos mais abastados, perpetuando a memória daqueles que podiam pagar. Já no século XX, se distinguiu – baseado nos modelos europeus e modernos – por seu prestígio e elegância, tornando-se um lugar de visitação não mais reservada apenas aos familiares/amigos dos que faleceram.
Distante da pompa do Cemitério da Consolação, localizado no ABC paulista, está o Cemitério Municipal de Diadema. Para evidenciar as desigualdades póstumas com um exemplo concreto, outros cemitérios do estado de São Paulo poderiam ser mencionados, porém, escolhi o único cemitério municipal da cidade de Diadema por razões subjetivas, já que acompanhei os velórios de três membros da minha família em um espaço de tempo de quatro anos nesse local. O cemitério está localizado no Bairro Conceição, relativamente perto do centro da cidade, e realiza cerca de cinco sepultamentos diários. De acordo com os sites Cemitérios na grade SP e Velórios e cemitérios, esse atende, em sua maioria, às camadas mais humildes da população, que podem ter um sepultamento provisório sem que a família tenha que pagar, com duração de três anos, que será seguida pela exumação. Essa necrópole se caracteriza por sepultamentos no formato de columbário que, geralmente, são espaços destinados a receberem as urnas dos falecidos, após a cremação. São estruturados, verticalmente, em paredes que contém pequenos nichos para armazenar os restos dos mortos, geralmente, em ambientes climatizados e confortáveis que permitem que os vivos prestem suas homenagens com dignidade. Entretanto, nesse cemitério, no lugar das urnas, são inseridos os caixões dentro das paredes verticais. Após esse processo, os espaços são fechados com cimento e, nesse momento, o nome do falecido deve ser escrito rapidamente antes que a massa seque (Figura 2). Por falta de padronização, muitas vezes os caixões cedidos pela prefeitura não cabem na parede, obrigando aqueles que o carregam a quebrar as partes do mesmo. Minha última visita a esse cemitério foi no mês de setembro de 2022, no velório de minha avó. Durante as horas da cerimônia, seguida pela ida do corpo até um espaço disponível, pude experienciar a dura realidade do destino daqueles que não foram privilegiados em vida. O local onde o corpo seria armazenado, por exemplo, estava tomado por insetos vindos dos outros espaços que continham corpos recém colocados, então mal conseguimos abrir os olhos para nos despedirmos; ademais, o caixão não cabia no nicho, então, enquanto os familiares o seguravam, um dos funcionários quebrava a alça com uma marreta, fazendo com que o corpo balançasse.
Portanto, pensando nos túmulos como uma forma de assegurar tanto a individualidade como a imortalidade, a partir das colocações da mestre em Memória Social Renata de Souza Nogueira em seu artigo Elos da memória: passado e presente, cemitério e sociedade (2012), podemos conceber o cemitério – cidade dos mortos – como uma extensão da cidade dos vivos. Ou seja, sendo o túmulo entendido como uma materialização da casa do indivíduo, a disposição desses na necrópole é organizada dando prioridade e visibilidade aos jazigos permanentes de famílias abastadas, enquanto os túmulos de famílias menos favorecidas serão encontrados dos locais de mais difícil acesso. Logo, “[...] o campo dos mortos é um lugar construído a partir da ótica da distinção social, hierarquizado, que petrifica a memória individual e coletiva, irradiando e refletindo poder e status” (FIGUEIREDO, 2020, p. 78). Em outras palavras, em nossa sociedade capitalista, apenas os mais abastados conseguem se tornar imortais – na memória dos vivos – pois pagam por resistentes prestígios – símbolos, jazigos, túmulos – na cidade dos mortos, garantindo seu lugar postumamente pela eternidade, mesmo que seja em cima de uma cova comum há muito esquecida.
[1] Ser inumado corresponde ao ato de ser enterrado.
[2] As necrópoles são grandes áreas destinadas para o enterramento e rememoração dos mortos, através dos túmulos monumentos, podendo ser compreendidas como os cemitérios. O nome deriva da palavra grega nekropolis, que significa “cidade dos mortos”, também utilizado neste artigo como seu sinônimo.
Referências bibliográficas
ALMEIDA, M. das G. de. Memórias, lembranças, imagens: o cemitério. Estudos Ibero-Americanos, [S. l.], v. 30, n. 1, p. 105–122, 2004. DOI: 10.15448/1980-864X.2004.1.23520. Disponível em: https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/iberoamericana/article/view/23520. Acesso em: 3 dez. 2022.
CATROGA, Fernando. “Recordar e comemorar. A raiz tanatológica dos ritos comemorativos”, Mímesis, Bauru, v. 23, n. 2, pp. 12-47, 2002.
FIGUEREDO, Olga Maíra. O Cemitério da Consolação: uma Encantadora Cidade dos Mortos. Curitiba: Appris Editora, 2020.
NOGUEIRA, Renata de Souza. Elos da memória: passado e presente, cemitério e sociedade. Vivência: Revista de antropologia, Rio Grande no Norte, n. 39, p. 81-89, jan. 2012.
PIMENTA, João Paulo. “Morrer, viver e lembrar”. In: O Livro do Tempo: uma História Social. São Paulo: Edições 70, 2022, pp. 391-440.
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