Pôster do filme mostrando os personagens principais em suas fantasias. Os atores pertencem ao Grupo Bagaceira de Teatro, sediado em Fortaleza. Foto retirada do site da distribuidora Embaúba. Link: https://embaubafilmes.com.br/locadora/inferninho/
O texto a seguir foi modificado a partir de uma fala de abertura concedida por mim no dia 16/09/2021, para um debate sobre o filme Inferninho (2018), no Cineclube Cinerama, com a presença do diretor Pedro Diógenes e do ator Rafael Martins. (https://www.youtube.com/watch?v=yMLENDsrulY&t=805s).
Trecho do filme em que o ator Rafael Martins aparece em seu traje de coelho. Foto retirada do site da distribuidora Embaúba. Link: https://embaubafilmes.com.br/locadora/inferninho/
No contexto social extremamente polarizado que vivemos hoje, um filme como “Inferninho” foi um alívio imprevisto. É um típico melodrama[1] – humano, universal, e profundamente sentimental. Sua linguagem acessível, mediada por uma linda fotografia, ultrapassa os muros da subjetividade alheia, entregando uma verdade simples, que afaga nossos medos e acalenta nossa deturpada existência.
Antes de adentrar em detalhes, vale ressaltar um dos seus gêneros, o do cinema queer, despontado na década de 90; isto é, um tipo de filme que resgata a temática LGBTQIA+ em seu cerne e inclui na sua representação os indivíduos julgados como estranhos, diferentes, marginalizados, e, portanto, deléveis. Ou seja, como se não bastasse ignorá-los, eles deveriam ser apagados, se não desprezados a ponto de buscar a liberdade pelo exílio social em espaços reclusos, fora de seus lares, em outros países, ou mesmo através do suicídio.
De acordo com a ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), em 2020, o Brasil apresentou número recorde de assassinatos de travestis e mulheres trans – 175, o mais alto do mundo. No primeiro semestre de 2021, tivemos mais de 80 casos relatados. Em comparação, nos Estados Unidos, durante esse mesmo período, foram 29 casos – menos que a metade. O assassinato está tão relacionado à vida dessas pessoas que uma pesquisa sobre pessoas trans e travestis nos principais sites de notícias mostra que 8 a cada 10 resultados relacionam-se a violência e/ou violações de direitos humanos. (BENEVIDES, Bruna. Dossiê: ASSASSINATOS e violências contra pessoas Trans em 2021)
Tudo isso é apenas uma face do preconceito extremado no Brasil. Essa conjectura excludente e perversa existe a fim de não corromper, de proteger, a alienada visão de mundo corroborada por um bocado da sociedade partidária das lógicas hegemônicas, calcadas na tradição de conduta.
“A família tradicional brasileira precisa ser preservada a todo custo! Mesmo que isso inclua armas, mortes, exclusão, empobrecimento, precarização do trabalho e da saúde. Os bons costumes precisam ser defendidos diante da depravação social encabeçada pelos ‘porcos’ comunistas” – diriam alguns.
Diante de tal discurso, o cinema queer sente grande necessidade de levantar alto a bandeira da causa pela qual lutam. O que é sem dúvidas uma luta justa, que deve ser tomada por alguém, por muitos, e levada à frente. Porém, como falei anteriormente, a polarização atual impede que haja uma conversa casual entre os que pensam diferentemente; basta sustentar uma cor, ou três, e tudo que for dito por qualquer um dos lados será prontamente ignorado e atacado pelo outro. Não importa mais se é amigo, família, namorado, namorada ou o que for. A opinião virou crença, enquanto a razão saiu sorrateiramente pela porta de trás.
Diante disso, um filme como Inferninho emerge brilhante num espaço místico, isolado do mundo, onde certa diplomacia me parece poder ser alcançada. Pois, apesar da pedra angular do filme ser exatamente a representação surreal, comovente e banal dos indivíduos que clamam reconhecimento, ele te convence antes pela história ubíqua – tocante a todos e a qualquer um – de amor, desilusões, intrigas e amizade, do que por uma causa política colocada em demasiada evidência para o gosto opositor. Não devemos nos esquecer que a causa justa nunca foi, e nem será, posta de lado, nem que seja pela mera lembrança do uso de um pronome de tratamento correto. Mas, por vezes, precisamos tentar dialogar e conversar, de maneira a mostrar uns aos outros que afinal somos todos humanos condenados a sentir as mesmas emoções e a suportar este peso imenso que é a vida.
Assim, um bar denominado Inferninho, onde os frequentadores se trajam com fantasias e estereótipos, onde o sol nunca ilumina, e o ambiente labiríntico e desorientador nos lembra de um sonho confuso, se transforma num lugar de possibilidades, não importando se você é gay, trans, cruel, mudo, nem mesmo se é uma cantora desafinada. Naquele canto isolado do mundo, os acontecimentos decorrem com tanta naturalidade que a causa incorpora o enredo sem que você nem perceba; transparecendo que, em verdade, não deveria haver motivo para enfocar as diferenças de algo que a princípio carece ser tão normalizado quanto é em uma relação entre qualquer casal cis hétero trocando carinhos em praça pública: o amor entre duas pessoas, independente do gênero.
No final, vence a potência patética (aquela que evoca sentimentos como sofrimento, paixão e afeto). Somos convidados a viajar com a protagonista (Deusimar) pela virtualidade dos nossos sonhos. Apesar de em um primeiro relance o chroma-key[2] usado aparentar uma falsificação tosca e intolerável da realidade, nos sentimos tentados a ultrapassar as falhas técnicas do que é possível, mas ainda não foi instituído, para contar mais uma história, como diria o escritor indígena Ailton Krenak – e como aponta também o final do filme. Neste mesmo livro, Ideias para adiar o fim do mundo, ele vai dizer: “Quando você sentir que o céu está ficando muito baixo, é só empurrá-lo e respirar” (KRENAK, 2019. p.14). Como? – você pode se perguntar. Bem, tomando a “instituição do sonho não como uma experiência onírica, mas como uma disciplina relacionada à formação, à cosmovisão, à tradição de diferentes povos que têm no sonho um caminho de aprendizado, de autoconhecimento sobre a vida, e a aplicação desse conhecimento na sua interação com o mundo e com as outras pessoas.” (KRENAK, 2019. p.28). Enfim, ao modo como Inferninho convoca todos a pensar e a sonhar.
[1] Gênero teatral surgido no século 18 que mistura diálogos com músicas em uma atuação sentimentalmente exagerada e dramatizada.
[2] Tecnologia que se utiliza de uma tela verde no fundo da cena filmada para criar efeitos visuais pela edição posterior em um computador.
Referências bibliográficas:
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Editora: Companhia das Letras, 2019
BENEVIDES, Bruna. Dossiê: ASSASSINATOS e violências contra pessoas Trans em 2021. Disponível no link: https://antrabrasil.org/assassinatos/
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