- Aqui?
– Sim, essa sala.
– Está bem, já estou entrando.
– Pode sentar. Comece do começo.
– Bom, é um leitor de ticket com gravação automática na saída do estacionamento que eu trabalho, bem comum, bem neutro, sabe? No seu cinza chumbo ele se mantém estático, fincado quatro palmos adiante do vidro do carro, não faz nenhum esforço pra chegar até mim, fica na minha responsabilidade dar uma levantadinha no bumbum para alcançá-lo com minha credencial, entende?
Enfim, entre o "pib" da máquina e o movimento de meia lua da cancela, a gravação automática é acionada e diz seu cotidiano – Obrigada! A intensidade do obrigada que a máquina me fala é de tal sinceridade, tal simpatia, que se máquina tiver alma, é de lá que vem.
E, às vezes, suspeito que tenha mesmo, essa tal de alma, mais que muita gente, minha cabeça ousa pensar. Não só alma, mas cultura e religião, e seu paraíso é regado a óleo e todas as máquinas vivem em harmonia, desde a manivela, até o mais novo software. E no leque entre eles, com parafusos, painel e mecanismos digitais há o leitor de ticket com gravação automática.
Ah, leitor de ticket com gravação automática, como te gosto! Saio da garagem e viro a primeira direita já com saudades dele, sabe? É sexta feira e volto a vê-lo só segunda, depois da reunião das 19h. A reunião nem começou e já me parece longa. E domingo, então? Não acabará nunca! Rio da minha pressa adolescente tirando o pé do acelerador; sinal vermelho.
Paro, dou seta para esquerda e olho o relógio, 20h07, ligo o Spotify e aumento o volume, 20h07, fecho o vidro do carro e pra minha surpresa, ainda marca 20h07. Respiro, arrumo o retrovisor e quando percebo estou a procura através dele do prédio que trabalho, sem o encontrar, claro, já dobrei uma esquina. O sinal segue fechado e eu mordo os lábios tentando disfarçar, mas – Que demora! deixo escapar.
Só depois de uns 2 segundos ele decide me mostrar o verde, o volante é rápido e contrariando a seta vira a direita. Além de alma, máquinas têm coração, o carro vai dar a volta no quarteirão! Piso o pé no acelerador e ele se deixa afundar, o Fiat 500 que eu fechei me olha preocupado, mas eu não tive tempo de explicar, precisei atravessar antes que o outro sinal fechasse, já estava no amarelo, eles estavam contra mim!
O acelerador se joga ao chão e passamos, vencemos! Só falta mais um deles, o volante firme, o cinto até me segura com mais força contra si, as rodas não se aguentam e passam o vermelho do sinal. Enfim, entro no estacionamento.
“Bip” o leitor da entrada me libera. – Esqueci minha bolsa! Falo em voz alta na tentativa de me justificar pra cancela. Com calma vou até minha vaga, disfarço ao olhá-lo na saída, passo por 3 carros espaçados, somos os últimos ainda no prédio. Faço a baliza e espero só o suficiente pra dar uma ajeitadinha no cabelo e o spotify trocar de música, uma mais calma, os acordes alternando em mi, fá sustenido, sol e si; romântico.
Chega no refrão e eu me aproximo do leitor de ticket com gravação automática, tímida dou a necessária e bem vinda levantadinha no bumbum para alcançá-lo e após o “bip” o tão esperado – Obrigada!
Me faz melhor que 10 anos de terapia, me cai melhor que um “eu te amo” a beira mar, melhor que sussurro no ouvido e lambida nas costas. Ignoro a cancela aberta e me recuso a cruzá-la, vou de encontro novamente com a credencial: “bip” – Obrigada! Que satisfação! Mais uma vez “bip” – Obrigada! Ahnn!
É então que o “bip” se confunde com “BIIIIII” e percebo que tem um carro atrás de mim buzinando feito louco.
– E foi aí que você chegou, sabe?
– Sim, sim, sei! Me lembro dessa parte!
– Você percebe seu guarda, não foi minha culpa desrespeitar o sinal vermelho, jamais faria uma coisa dessas, foi o sinal que estava me maltratando! Não é justo nenhum dos 7 pontos que você quer acrescentar na minha carteira.
– Achando justo ou não, são 7 pontos na carteira mais a multa ou…
– Ou o que? Vai me prender? Pois me leve logo, que se eu chegar em casa essa hora da noite a TV vai mesmo desconfiar.
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