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Giovanna Pecorari Coelho

Faz de conta um conto

Atualizado: 21 de ago. de 2022

Era uma vez, numa cidade tão distante, um vilarejo de tomateiros.


Por lá, as pessoas pareciam ter uma rotina simples, em torno da agricultura familiar. A maioria que ali vivia, recebeu dos seus antepassados, que também moravam naquelas terras, a tradição de plantar seus tomates. Aquele solo fértil tinha sido pisado por diversas gerações, que trouxeram muito mais do que alimento para a sociedade. Aquela comunidade tinha as suas histórias entrelaçadas e essa atividade foi a subsistência de várias gerações.


Neste lugar também vivia Dona Margarida, que mesmo aposentada de plantar tomates, carregava em seu corpo e em suas veias, os anos nos quais se dedicou a esse trabalho. Como já não trabalhava mais, durante o dia se dedicava a cuidar do neto, enquanto seus filhos estavam na roça com os tomates.


Certo dia, Dona Margarida recebeu uma visita de alguns jovens, que estavam por lá apenas de passagem, aparentemente para ajudar como pudessem. Ela tinha ouvido falar que eles estariam na cidade ali por perto durante alguns dias, para divertir a criançada, fazer algumas doações e que de vez em outra, faziam uma visita em algumas casas.


Entretanto, aquele não era um dia bom para ela. Na realidade, os últimos dias não tinham sido bons.


Ela abriu a porta, junto de seu neto agarrado em suas pernas como se não as quisesse soltar, e avistou duas garotas, um garoto e um homem adulto. Imediatamente, esboçou um sorriso de alegria em meio a um rosto abatido e desesperançoso.


Com uma rouquidão na voz e muito abatida, os convidou para entrar e tomar um café. Muito debilitada, Margarida começou a contar sua história para os jovens.


Há dois dias ela tinha ido parar no hospital, contou que por pouco não morreu.


Nesse momento ela já enxergava, em seus convidados, uma expressão de espanto em seus e ao mesmo tempo de tristeza pela sua história. Era provavelmente a primeira vez que colocava em palavras o que de fato ocorreu e conforme as palavras saíam com dificuldade de sua boca, deixava de tentar conter as lágrimas que escorriam de seus olhos.


No hospital, descobriu a causa da sua quase morte e sua rouquidão na voz. Depois de alguns exames e durante a sua recuperação, o médico trouxe a temida notícia: ela tinha poucos dias de vida. Descobriram que ela estava intoxicada, os agrotóxicos que ela utilizou por anos para matar as pragas indesejadas ao plantar os tomates, estavam no seu corpo, no seu sangue.


Essa história não era inédita naquela comunidade, que tinha a sua vida dedicada aos tomates. Ela contou que mesmo com todos os equipamentos de proteção, um ou outro vinha a se intoxicar e morria.


Seu neto, em silêncio, brincava ali do lado. Os jovens escutavam calados a história de uma vida. Não uma história de faz de conta, uma história de uma vida real.


Uma das jovens que estava presente nesse dia, em julho de 2017, era eu. Um dia que eu nunca esqueci e jamais esquecerei, Dona Margarida e seu neto são rostos que eu nunca vou me esquecer.


Vivemos num mundo de crônicas, contos, documentários, histórias tão surreais, que de fato, parecem irreais e distantes de nós, mesmo que tão próximas.


Diante dessas histórias, vidas e prosas, o que nos cabe fazer?

O que nos cabe ser?


As respostas vão além da imaginação, são idealizadas em debates diários na sociedade, são pautas de artigos científicos, nas universidade, nas escolas, fazem parte da realidade, vivem nos detalhes, vivem na história. São tão triviais, mas não são óbvias. Ainda não existe um consenso para todas as questões desse mundo e duvido certamente se um dia haverá.


Hoje não trago respostas, trago dúvidas e reflexões.


Trago junto com essa história real, meus sentimentos pela vida da Dona Margarida, pela sua família, por todas as donas Margaridas pelo mundo.


Desde 2010 eu faço trabalho voluntário em diversas áreas e, como voluntária, durante todos esses anos ouvi e vivi histórias como a da Dona Margarida. Cada uma delas mudaram um pouco como eu enxergava o mundo. Nesse processo, eu sinto que recebi muito mais do que pude doar de fato, passei a valorizar mais tudo que a vida pode proporcionar. Entender na prática os meus privilégios.


Vez ou outra essas histórias retornam na minha mente durante a minha rotina. Elas ajudam a compreender a finitude da vida, a pluralidade e as ausências do mundo, mas, principalmente, suas diferenças e necessidades. Enxergar diferentes realidades, nos viabiliza a ter empatia, reciprocidade e mais consciência das nossas decisões e posicionamentos.


Hoje eu te convido a viajar além da sua história, além das histórias fictícias de faz de conta que adoramos assistir no entretenimento, a procurar enxergar essas histórias, as instituições ao nosso redor, as pessoas ao nosso redor. Além das problemáticas, precisamos passar a pensar nas soluções. Precisamos ir além.


Ir além nos tira da nossa zona de conforto e é necessário.


Termino essa história com um fato tão real e comum: neste momento 33.1 milhões de brasileiros passam fome e estão em situação de insegurança alimentar (representando uma parcela de 15,5% da população brasileira). Enquanto isso, muitos outros como Dona Margarida entregam as suas vidas para que uma sociedade possa comer e para que, até certo ponto, a sua família exista.


Essa história, definitivamente, não é um conto.


*Dona Margarida foi adotado como nome fictício do original.


Referências bibliográficas

CONSELHO FEDERAL DE NUTRICIONISTAS. Pesquisa revela que a fome avança no Brasil e atinge 33,1 milhões de pessoas. Conselho Federal de Nutricionistas, [S. l.], 8 jun. 2022. Disponível em: https://www.cfn.org.br/index.php/noticias/pesquisa-revela-que-a-fome-avanca-no-brasil-e-atinge-331-milhoes-de-pessoas/. Acesso em: 3 jul. 2022.


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