**Sobre a autora: Esther é graduanda em Direito na USP, tem 23 anos e atualmente mora em São Paulo. Seu principal objeto de estudos é a área de intersecção entre direito penal e direitos humanos, com interesse especial em questões de gênero
O diagnóstico de morte e os critérios médico-científicos para sua verificação exercem grande importância nos diversos âmbitos sociais e vinculam-se à relação entre questões técnicas de saúde pública e questões ético-sociais, como a doação humanitária de órgãos, as operações de transplante, as possibilidades de prolongamento artificial da vida através de aparelhos tecnológicos e o exato momento adequado para efetuar o desligamento desses aparelhos. Nesses termos, a determinação exata do diagnóstico de morte e a definição dos critérios que devem ser observados para sua averiguação constituem grande preocupação da sociedade médica. É nesse cenário que, mediante avanços científicos da medicina, se admite o diagnóstico de morte de um paciente através da constatação da morte encefálica ou cerebral.
Sob perspectiva geral, a morte encefálica equivale à situação de coma irreversível, o qual é marcado (i) pela absoluta ausência de respostas aos estímulos externos; (ii) pela ausência de respiração espontânea; (iii) pela cessação completa das atividades do sistema nervoso e assim, ausência de todos os reflexos; (iv) e por fim, pelo critério da realização do eletroencefalograma isoelétrico[1]. Segundo os critérios estabelecidos pelo Conselho Federal de Medicina, o diagnóstico de morte encefálica se vincula, de maneira exclusiva, ao coma de causa conhecida e irreversível, conjugado à ausência de reação motora e à ausência de respiração natural contínua.
A verificação da morte cerebral de um paciente exige a observação de rigoroso protocolo de análise, que determina a realização de exames clínicos e exames complementares durante intervalos de tempo variáveis, de acordo com a idade do paciente, para que não haja erro ou dúvidas quanto à situação de parada completa das atividades cerebrais do indivíduo. Assim, no ano de 2017, o Conselho Federal de Medicina atualizou a metodologia e o processo para a determinação da morte encefálica, integrando em seu texto as preocupações éticas, e trazendo a necessidade de certeza no diagnóstico.
A importância da determinação de critérios científicos inequívocos para o diagnóstico de morte vem, primordialmente, da importância dos transplantes de órgãos e tecidos. A equivalência do conceito de morte, no contexto jurídico e médico, ao diagnóstico de morte encefálica foi concretizada pela comunidade médica em razão da possibilidade de realização de transplantes de órgãos provenientes de indivíduos já mortos. A certeza da morte do paciente é imprescindível nesse contexto e deve ser aferida o quanto antes, possibilitando a doação.
Nesse sentido, esse diagnóstico responde a duas questões importantes concernentes aos transplantes de órgãos: a possibilidade do desligamento dos aparelhos de suporte vital do paciente e a retirada de seus órgãos vitais para doação, quando viável. Se o paciente for um potencial doador de órgãos, diante de autorização dos familiares, os aparelhos de manutenção dos órgãos vitais devem permanecer em funcionamento para conservação e devida nutrição dos órgãos e tecidos a serem doados para realização de transplantes.
Assim, diante do diagnóstico positivo, após comunicado aos familiares e fundamentado em registro no prontuário, o médico responsável possui autoridade legal e ética para retirar o paciente do suporte vital, quando esse não configurar potencial doador de órgãos e tecidos para transplante, hipótese em que seu corpo deve ser entregue aos seus familiares ou encaminhado à necropsia.
Quanto à suspensão dos procedimentos de suporte terapêutico do paciente, a comunidade médica compreende que a morte encefálica consiste na morte clínica do paciente, sendo dever ético-legal do profissional da saúde suspender os suportes de manutenção artificial dos órgãos vitais. Argumenta-se que essa suspensão não configura eutanásia ou forma de crime contra a vida, tendo em vista que o paciente já está morto, seu estado é irreversível, e não constituí paciente em estado terminal. Nesses termos, a manutenção artificial é desnecessária e onerosa, e sua inutilidade deve ser explicada, de forma solidária, clara e humana, aos familiares do falecido.
A partir disso, observa-se que a concepção de morte encefálica é moderna e historicamente datada, vinculando-se aos avanços tecnológicos, sobretudo ao surgimento da ventilação mecânica, e às possibilidades de realização das cirurgias de transplantação de órgãos e tecidos. Nesses termos, denota-se o caráter utilitarista[2] que marca a concepção técnica de morte, afastando a ideia comum da morte biológica como um processo humano natural.
Culturalmente, a morte é definida pela parada espontânea e permanente dos órgãos e tecidos do corpo humano, sendo caracterizada, principalmente, pela interrupção natural dos batimentos cardíacos. Nesse sentido, a conceituação de morte encefálica, posta pela comunidade médica e pelo ordenamento jurídico, não tem total aprovação social. A grande desconfiança em relação ao diagnóstico de morte encefálica é relacionada de seu caráter utilitário ligado à necessidade de obtenção de órgãos viáveis para a realização de transplantes, uma vez que, em meio ao embate de interesses, surge a dúvida sobre a veracidade da confirmação da morte do paciente, que ainda apresenta um coração batendo.
Apesar do conceito de morte encefálica ser legítimo em meio à comunidade médica, em razão da irreversibilidade dos danos causados ao encéfalo e da impossibilidade de vida interativa autônoma, há dificuldade de aceitação do diagnóstico perante um corpo que mantém as atividades cardiovascular e pulmonar, mesmo que de maneira artificial, visto que biologicamente identifica-se, ainda, indícios de vida. Do ponto de vista social, a morte verdadeira constitui processo complexo e contínuo que envolve diversas dimensões: fisiológicas, neurológicas, terapêuticas e legais.
É nesse contexto que familiares de pacientes diagnosticados com morte encefálica não autorizam a remoção dos órgãos para doação e recusam o desligamento dos aparelhos de sustentação vital. Nesse ponto, o desligamento dos aparelhos de manutenção artificial dos órgãos vitais configura relevante questão bioética. Em razão de sua incompreensão como situação definitiva e irreversível, leigamente, o desligamento dos aparelhos é rechaçado diante da esperança de recuperação do paciente, argumentando tratar-se de eutanásia.
Todavia, do ponto de vista científico, não cabe debater a eutanásia neste aspecto, pois a comprovação da ocorrência de morte encefálica significa, precisamente, que o indivíduo está morto e a manutenção do suporte vital é inútil. Desta forma, quando há verificação desse diagnóstico, o médico não atenta contra a vida ao desligar os aparelhos, pois o tratamento de sustentação artificial da vida, como o próprio conceito coloca, é artificial, e, portanto, desnecessário mediante a irreversibilidade do quadro clínico.
À vista disso, a suspensão do suporte vital do paciente diagnosticado com morte encefálica é lícita, consistindo em dever ético-legal do profissional da saúde, estabelecido, inclusive, pelo Conselho Federal de Medicina. Diante disso, a inutilidade de tratamentos terapêuticos deve ser explicada, de forma solidária, clara e humana, aos familiares do paciente morto, respeitando suas crenças e questões espirituais e transcendentais.
Os dilemas e problemáticas trazidos pela concepção de morte encefálica vinculam-se, principalmente, à insegurança social em relação ao seu conceito e aos procedimentos necessários para o seu diagnóstico certo, considerando-se que tal concepção é permeada, substancialmente, por interesses na realização de transplantes. Nesse sentido, pontua-se ser dever da comunidade médica explicar todos os aspectos da morte encefálica, assim como os procedimentos necessários para sua verificação, de maneira clara e acessível a toda a população, desmistificando essa concepção técnica de morte.
[1] O eletroencefalograma é um exame que identifica a inatividade elétrica cerebral do paciente, através do posicionamento de eletrodos no crânio para identificação de potenciais de ações encefálicas por meio da captação das ondas provocadas pela atividade encefálica.
[2] O caráter utilitarista vincula-se à ideia de praticidade e finalidade dos meios ou atos empregados, de forma a se desconsiderar outras questões relevantes, como pontos éticos e morais.
Referências Bibliográficas
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BITENCOURT, Almir Galvão, et al. 2007 “Avaliação do conhecimento de estudantes de medicina sobre morte encefálica”. Revista Brasileira de Terapia Intensiva, 147, Vol. 19, nº 2, Abril-Junho, 2007. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbti/a/CBtQ35LBB5K55KKWkfSW56F/?format=pdf#:~:text=JUSTIFICATIVA%20E%20OBJETIVOS%3A%20Por%20ser%20um%20conceito%20relativamente,de%20Medicina%20sobre%20o%20protocolo%20diagn%C3%B3stico%20de%20ME.
FRANÇA, Genival Veloso de. Medicina legal. 11.ed. p. 1.007. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2017.
GOGLIANO, Daisy. Pacientes terminais – morte encefálica. Revista Bioética (Conselho Federal de Medicina). 1998. Disponível em: https://revistabioetica.cfm.org.br/index.php/revista_bioetica/article/viewFile/493/310.
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