A morte é um problema dos vivos. Os mortos não têm problemas (Norbert Elias)[1].
Morte: assunto sussurrado com cautela, tema evitado, gerador de constrangimento, tabu. Esse geralmente é seu lugar nos dias atuais. Nós, seres humanos, somos os únicos seres conscientes da própria morte, o que nos permitiu mobilizar esforços para desenvolver técnicas de sobrevivência.
Como um problema essencialmente humano, a morte é, também, um problema social. A maneira que com ela lidamos não é universal ou inata, é aprendida e passível de mudanças, de acordo com a sociedade que a vive. Pode-se encarar a finitude da vida através de mitos religiosos, através do encobrimento da ideia indesejada ou até através da crença na própria imortalidade.
É possível recuperar ritos e crenças da pré-história, quando alguns corpos eram enterrados na posição fetal, buscando um renascimento dentro do útero da mãe terra[2], demonstrando que o ser humano sempre tentou, de alguma forma, elaborar narrativas sobre esse momento, na tentativa de explicar e conviver com o desconhecido.
Dando um salto cronológico até a Idade Média: a morte era escancarada, parte do cotidiano. Os quartos que abrigavam os moribundos[3] se enchiam de vivos, inclusive crianças, todos acompanhando o processo. Ademais, sob o piso das igrejas enterravam-se beatos que, ao se decomporem, geravam um odor pestilento responsável por adoecer a população.
Contudo, uma morte menos escondida não significa um óbito mais sereno; pelo contrário, a vida era muito mais incerta – guerras, fome, doenças – e cercada de medo – incitado por pregações religiosas.
Identifica-se, até esse período, a forte presença de fantasias coletivas religiosas acerca da morte. Inclusive, instituições – como a Igreja Católica – baseavam seu poder de controle das massas no medo do pós-vida, muitas vezes fomentado por elas mesmas. Por outro lado, tais fantasias traziam conforto ao dimensionar a possibilidade da paz eterna, livre de qualquer sofrimento.
A partir do século XIX, com o processo de modernização da sociedade ocidental, houve progressiva diminuição da força dos ritos sagrados, em razão de sua transferência para o campo das crenças individuais, o que, consequentemente, contribuiu para o afastamento da morte.
Além disso, atualmente, a vida é mais previsível, a medicina avançada nos dá maior segurança, a expectativa de vida aumenta progressivamente. Dessa maneira, a morte se torna uma realidade ainda mais distante e, segundo o sociólogo Norbert Elias, o ser humano se crê imortal:
“Nunca antes na história da humanidade os métodos mais ou menos científicos de prolongar a vida foram discutidos de maneira tão incessante em toda a sociedade como em nossos dias. O sonho do elixir da vida e da fonte da juventude é muito antigo, mas só assumiu uma forma científica – ou pseudocientífica – em nossos dias”[4].
Todo o processo de falecimento é realizado por profissionais, desde o tratamento dos cadáveres até o cuidado com as sepulturas. A morte é higiênica. A família, quando muito, está presente para o velório e o enterro, no qual o morto é finalmente depositado sob uma lápide solitária, que sucumbirá ao tempo, esquecida.
O encobrimento da morte cria, ademais, uma dificuldade dos mais jovens de se identificarem com os idosos, com suas aparências envelhecidas e suas limitações geradas pela idade. É possível até se falar do medo de encarar a realidade do envelhecimento.
Ou seja, o afastamento se inicia antes mesmo do fim da vida: o envelhecimento e o adoecimento já são rechaçados pelos que vivem a juventude plena. O resultado é a solidão daqueles dos quais a morte se aproxima, os moribundos. Hoje, idosos são depositados em asilos ou hospitais, locais em que há pouca ou nenhuma interação com as pessoas e o mundo ao qual eram afeiçoados, que os conectavam ao meio social.
Em uma sociedade capitalista onde a utilidade social é representada pela capacidade de trabalhar, e o corpo saudável é o corpo jovem, os anciãos não têm lugar, não são vistos como indivíduos capazes de integrá-la.
Outros sintomas da nossa atual incapacidade de lidar com a finitude da vida são o desconforto diante de um moribundo e a falta de vocabulário, tanto para tratar desta situação quanto para demonstrar compaixão à família do falecido. Palavras e rituais pré-estabelecidos soam superficiais, mecânicos, gastos. Porém, ainda não foram substituídos por novos protocolos, mais adequados ao estágio civilizacional em que estamos. Isso, somado à progressiva dificuldade de exprimir emoções verificada na atualidade, resulta, novamente, no encobrimento da morte e no abandono dos moribundos, a fim de evitar o constrangimento.
Obviamente, diante dos contrastes da sociedade atual, é preciso refletir também sobre as diferentes nuances que a morte assume de acordo com a classe, a raça e o gênero. Para moradores das periferias espalhadas pelo Brasil, por exemplo, a morte é muito mais escancarada – retomemos a cachina no Jacarezinho em maio de 2021 –, pois vivem em um ambiente constantemente ameaçado pela violência, onde a morte – e o assassinato - está à espreita.
Além do mais, a atual pandemia do COVID-19 mudou nossa proximidade com a morte, anunciando, diariamente, a quantidade de óbitos pela doença; sem contar o medo que nos ronda. Interessante, também, é observar a reação da sociedade diante da ameaça viral: a ciência se apressou em buscar soluções médicas e a sociedade se desdobrou em medidas de prevenção, provando que o ser humano, atualmente, se sente capaz de driblar a morte. Porém, para os que contraem a doença, a morte é protocolarmente isolada e os rituais de solidarização com a família – como o velório – estão temporariamente suspensos. O processo de encobrimento da morte avança.
Por fim, destaco que o objetivo de tal discussão não é julgar nossa maneira de lidar com a morte, ou resgatar, nostalgicamente, a morte escancarada do passado, muito menos se propõe a solucionar o problema. O objetivo é uma reflexão acerca do lugar da morte e dos moribundos na sociedade atual, destinados ao estado de estorvo ou de nada, descaracterizados como indivíduos. É entender a morte como fator sociológico, não universal, buscando compreender o papel que esta assume em nosso modo de vida, um papel passível de mudanças.
[1] ELIAS, Norbert. A Solidão dos Moribundos, p. 10. Destaque da redação.
[2] DA SILVA, Enock Douglas Roberto, et al. A morte no ocidente: considerações sobre a história da morte no Ocidente e suas representações históricas.
[3] Moribundo: “que ou o que está morrendo, que ou o que agoniza”. Termo utilizado pelo sociólogo que deu base ao artigo, Norbert Elias, em seu livro “A solidão dos moribundos”
[4] ELIAS, Norbert. A Solidão dos Moribundos, p. 56
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ELIAS, Norbert. A solidão dos moribundos, seguida de envelhecer e morrer. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.
DA SILVA, Enock Douglas Roberto, et al. A morte no ocidente: considerações sobre a história da morte no Ocidente e suas representações históricas.
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