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Laura Lopes

O artificial versus o natural em uma especulação a respeito do que entendemos

Atualizado: 10 de jul. de 2022

por ‘’ficção científica’’ e qual seu espaço em nossa realidade



“A relação entre organismo e máquina tem sido uma guerra de fronteiras”

– diz a filósofa e bióloga especializada em tecnociência Donna Haraway, em sua obra “Manifesto Ciborgue: Ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX" (1985).


A intenção deste ensaio é provocar uma reflexão a respeito da desmantelação dos limites entre estes conceitos - historicamente e religiosamente definidos- em curso neste período em que vivemos. Para isso, o raciocínio incentivado nas seguintes linhas não necessariamente deve passar ou acabar na suposição (ou insinuação) de que estamos caminhando para um trágico fim que envolva nosso extermínio ou o desaparecimento dos elementos que compõem a realidade como (pensamos que) conhecemos antes do avanço gigantesco da tecnologia.


A ficção científica no audiovisual ou na literatura se constrói na combinação de fatos científicos, inseridos em contextos ‘’fantasiosos’’ que geram narrativas que antecipam e anseiam projeções de um futuro do qual só temos pequenas pistas.


Este futuro calculado muitas vezes retrata, de forma caricata, criaturas de inteligência artificial como seres vingativos, perversos e ambiciosos. Muitos dos enredos de filmes sci-fi [1] acabam criando uma concepção da relação do humano com a máquina como fadada ao fracasso: polariza dominados e dominadores, indica tragédias, rebeliões e até mesmo o fim da humanidade. Essa demonização dos seres artificiais aparece nos episódias da série de animação Love, Death + Robots (2019) e fica clara em filmes como Eu, Robô (2004); Blade Runner (1982); O Exterminador do Futuro (1984); Soldado do Futuro (2013). (Vale observar que vários dos títulos de filmes sci-fi de enredo quase apocalíptico possuem a palavra futuro.)


É claro que existem ressalvas em representações de caráter futurista com histórias mais refinadas e menos maniqueístas[2], mas que atribuem a “culpa” das consequências do intenso envolvimento com a tecnologia aos próprios seres humanos, como a série Black Mirror (2011).


Porém, é importante o processo de voltar o olhar ao presente e pontuar que a realidade dos tempos do Hoje é campo de uma forte tendência ao desmonte de conceitos muito inflexíveis, generalizados e dogmatizados[3] no inconsciente coletivo, como por exemplo o que entendíamos por gênero e família. A evolução de teorias sociais, de gênero e cultura somados a estudos científicos e ao crescente fluxo de informações através da internet, evidenciam cada vez mais a ineficiência do estabelecimento destes conceitos gerais.


Um bom exemplo é retomado na obra “Manifesto Ciborgue”, de Donna Haraway: as fronteiras entre o humano e o animal já não fazem mais tanto sentido após a comprovação de que atributos antes considerados apenas “humanos” como a linguagem, a sociabilidade, o uso de instrumentos e até mesmo os fenômenos psicológicos, estão presentes em diversas outras espécies. Com isso, fica clara a ilusão da tão polêmica distância entre os conceitos de natureza e cultura.


O conceito de ciborgue[4] entra, então, como uma nova forma de perceber a relação do humano com máquina, orgânico com artificial. “Longe de assinalar uma barreira entre as pessoas e os outros seres vivos, os ciborgues assinalam um perturbador e prazerosamente estreito acoplamento entre eles”, diz Donna Haraway.


A grosso modo, há décadas utilizamos ferramentas artificiais incorporadas ao nosso próprio corpo: a osteossíntese, isto é, a implantação de placas, hastes ou pinos nos ossos para corrigir fraturas; a utilização de marca-passos, dispositivos implantados sob a pele para estimular o coração e tratar doenças cardíacas; a prática de cirurgias robóticas, em que o cirurgião manipula, através de um painel, um robô com instrumentos de extrema precisão e câmeras que geram imagens em alta definição 3D para realizar operações delicadas e minimalistas. A parte robótica acaba por servir como uma extensão mais eficiente e refinada do corpo humano que realiza a cirurgia.


Além dos facilitadores robóticos em processos no interior do corpo, mecanismos de inteligência artificial, ou seja, sistemas de computador capazes de armazenar informações e sintetizá-las para realizar diversas funções, também ocupam cada vez mais espaço em ambientes domésticos e se fazem cada vez mais presentes no dia-a-dia. Esse é o caso de dispositivos como a Alexa, da Amazon e a Siri, da Apple.


Neste dinamismo de uma crescente relação de comensalismo[5] entre humanos e máquinas, torna-se mais nítido o vislumbre de que, para além da travessia das fronteiras entre ambos, convém pensar nesta relação de forma menos dramática (sem deixar de lado o uso responsável dessas tecnologias) e repensar as segmentações que tendemos a estabelecer, sempre atribuindo a culpa à um dos lados.


Desse modo, cabe a reflexão do quão saudável é cultuar a crença de que estamos cada vez mais lesados e subjugados pela tecnologia porque, de muitas formas, nós a instrumentalizamos em nosso favor. Além disso, diante do bombardeio de notícias ruins, sensacionalistas e trágicas que consumimos direta e indiretamente todos os dias, idealizar um futuro que se molda na destruição não parece o melhor caminho de encarar o presente e construir a ponte metafórica que nos levará a um desfecho que não podemos prever com exatidão. No entanto, podemos, com cautela, criar essa ponte a fim de encontrarmos meios racionais e possíveis de se chegar ao outro lado com segurança e plena visão de um horizonte que viabilize não apenas a existência humana, mas também todas as outras formas de vida.


[1] sci-fi se refere à ficção científica; é uma abreviação do termo em inglês - science fiction.

[2] o maniqueísmo é a divisão de dois lados opostos e inconciliáveis.

[3] dogmatizar quer dizer estabelecer ideias como indiscutíveis, incontestáveis.

[4] Ciborgue, segundo Donna Haraway, é um híbrido de máquina, ou seja, que possui componentes mecânicos ou eletrônicos, com organismo, o corpo humano.

[5] o comensalismo consiste em uma relação entre duas espécies diferentes, da qual uma se beneficia da outra sem trazer prejuízos ou consequências negativas.



Referências bibliográficas

HARAWAY, D. Manifesto Ciborgue: Ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX. In. Tadeu, T.(Org.) Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.


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