Com a invasão das novas tecnologias eletrônicas na vida de quase todos os habitantes do mundo, torna-se absolutamente indispensável compreender a relação que estabelecemos com esses novos objetos e como eles afetam nossas vidas. Grande parte dos estudiosos sobre o tema constatam que seu estudo, teoria, pensamento etc., é pragmático, isto é, parte de uma postura que tenta aproximar-se do fenômeno por ambos os lados e imparcialmente - não apenas de um polo que defenda a supremacia dos computadores, celulares e afins; nem de outro que condena esses aparatos, ficando preso ao passado.
Observo em mim mesmo a paixão por livros, pela música clássica, pelo cinema de arte, pela visitação de museus em busca da mera fruição estética (ato de desfrutar ou ter prazer de algo), enfim, por experiências profundas que ocorrem em sua temporalidade necessária e natural, sem acelerações, sem desvios, sem a espetacularização feita para prender e vender, e outras características associadas ao mundo virtualmente conectado. Por isso, sei muito bem como as tendências regidas pelo hábito atuam imperiosamente sobre o trabalho intelectual que tenta refletir a contemporaneidade. Entretanto, por mais que algumas pessoas digam o mesmo, não deixam de transparecer crenças aferradas a um partido.
O costume é efetivamente um pérfido e tirânico professor. Pouco a pouco, às escondidas, ganha autoridade sobre nós; a princípio terno e humilde, implanta-se com o decorrer do tempo, e se afirma, mostrando-nos de repente uma expressão imperativa para a qual não ousamos sequer erguer os olhos [1].
Não é nada condenável, em verdade. É admirável que alguém tenha paixões tão enraizadas a ponto de lutar ardentemente para defendê-las. Todavia, na busca do meio-termo aristotélico[2], o pêndulo é o objeto que melhor representa a atitude ideal: sem nunca parar em alguma extremidade, transita no mesmo compasso por ambas - a imobilidade, na posição que for, implica em atrofiamento da capacidade crítica adaptativa. Logo, creio que ousar sair um pouco de si, possa ser produtivo no âmbito de um conhecimento menos pessoal que ultrapasse os costumes naturalizados e reconheça o mundo digital imparcialmente, sem os preconceitos herdados de uma tradição aristocrática que dissimuladamente permeia nossas vidas.
A ideia inicial surgiu a partir de algumas curiosidades históricas recolhidas por aí. Veja, gostamos de dizer que estamos na época mais única de toda a humanidade, que nunca houve tantas mudanças significativas em tão pouco tempo, que a organização da realidade nunca sofreu tanto impacto no que diz respeito a alterar a maneira de estar no mundo etc. Não desejo discordar dessas exclamações, acredito que possam ser verdadeiras. O problema está na fascinação que provocam, na luminosidade que cega enquanto impele o cerne da questão para a amplitude da diferença e não para a diferença em si.
Sim, de fato, os aparelhos eletrônicos são uma tecnologia completamente surpreendente; porém, há aspectos da nossa relação com objetos – antigos e modernos - mais regulares do que parecem ser. Por exemplo, em “A multidão e as massas”, de Gabriel Tarde, nota-se que o impacto provocado pela disseminação do jornal impresso não foi tão diferente de críticas que hoje atribui-se ao celular: “Nossa Universidade não tem mais a ideia da afluência e da atenção de outrora, em seus anfiteatros hoje desertos em três quartas partes. A maioria dos que antes estariam apaixonadamente curiosos por ouvir um discurso pondera hoje: ‘Eu o lerei em meu jornal’”[3]. Tal passagem não parece muito similar à opinião geral acerca do celular? Como os alunos hoje podem transcorrer o período de uma disciplina utilizando-o como apoio a fim de ignorar a dimensão presencial? Ou a como a atenção em coisas realmente importantes é diluída nas tecnologias menores que fornecem sínteses dos mais diversos assuntos?
Os eruditos de alguns séculos atrás achavam que a tradução de livros importantes para a “língua vulgar”, ou seja, aquela que é democrática, que dispensa o latim ou o grego utilizado somente nas academias, destruiria o conhecimento ao permitir que “ignorantes” tivessem acesso a eles. Da invenção da imprensa, dizia-se o mesmo. Quando olhamos para trás, percebe-se que todos os humanos em quase todas as épocas achavam que alguma invenção nova, seja ela uma dança, um instrumento, uma mídia, um gênero musical, um estilo de arte, uma roupa, ou qualquer tipo de coisa impactante que ameaçasse o status quo, destruiria o modo “correto” de conhecer e viver. Somos, em geral, incapazes de entrever a verdade fora de nossas opiniões, fora das leis e costumes que estruturam o presente, tamanho é o peso da tradição em nós.
Para entender o impacto das novas tecnologias hoje, primeiro devemos atenuar a consciência narcisista que se acha historicamente especial. Não somos tão únicos assim; como exemplificado acima, diversas mudanças parecidas já ocorreram antes, e atualmente ninguém pensa que o jornal foi o grande responsável por destruir a escolarização, ou que a democratização do conhecimento diminuiu seu valor. A relutância em aceitar a mudança muitas vezes é justificada por essa concepção de que devemos nos refugiar em costumes do passado, no intuito de sobreviver à invasão das novas tecnologias, ao invés de incorporá-las adequadamente e com sabedoria.
É inevitável a aceitação dos novos aparatos e ferramentas eletrônicas na sociedade atual. A pandemia veio para agravar a situação: presos em nossas moradias, descobrimos que muitos problemas são evitados utilizando-as. Uma reunião presencial pode conter o benefício que for para justificar não a fazer pelo zoom; ainda assim, deparando-se com o aluguel de um espaço de trabalho para esse fim, ou com o tempo e energia gastos na locomoção até o local, muitos optam pela tecnologia. E, por esse motivo, estudar as interações positivas desses regimes virtuais é importantíssimo. Também não precisamos bater um contra o outro. Coexistindo no presente, não se excluem; estão fundamentalmente em uma relação de interação que a atitude polarizadora é incapaz de compreender, porquanto, isolar um ou outro não faz nada mais do que encobrir elos que os unem entre si, e com a vida. Não somente que unem, mas são responsáveis pela própria existência desses objetos.
Consequentemente, a mobilidade do pensamento é indispensável. Por mais que se tente resgatar teses fundadas racionalmente para fixar um quadro de ideias, se elas não forem situadas no tempo, e dessa maneira, no incessante fluxo de eventos mundanos que as englobam, serão apenas carcaças natimortas esperando para serem devoradas por alguém que as prove erradas. O próprio exemplo do pêndulo fornecido acima é inadequado, pois não devemos pensar o conhecimento como um vetor de espectros cromáticos que vão da direita para a esquerda em uma linha contínua. Os matizes[4] são dados em todas as direções e não estão parados, como num caleidoscópio[5].
Notas:
[1] MONTAIGNE, Michel. 2016, p.147
[2] Doutrina criada por Aristóteles onde o posicionamento em extremos opostos deve ser combatido pela tentativa de manter-se dentro de um equilíbrio entre eles.
[3] TARDE, Gabriel. 2005, p.28
[4] Matiz significa graduação de cores, cada tom possível em que elas podem apresentar-se e que são infinitos.
[5] É um instrumento óptico que cria efeitos visuais simétricos.
Referências:
MONTAIGNE, Michel. “Dos costumes e da inconveniência de mudar sem maiores cuidados com as leis em vigor”. In: MILLIET, Sérgio (trad.). Ensaios. São Paulo: Editora 34, 2016.
TARDE, Gabriel. “A opinião e as massas”. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
WOLF, Mary. “O cérebro no mundo digital”. São Paulo: Contexto, 2019.
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