A visão contemporânea da maternidade
A maternidade sempre foi vista como sendo uma característica inerente às mulheres, como um passo a ser dado em suas vidas, de preferência, daquelas já casadas. Quando se coloca um processo tão complexo como algo a ser seguido e executado com perfeição, exigência frequentemente dada às mães e não aos pais, a maternidade deixa de ser uma escolha e passa a ter um papel compulsório a ser desempenhado pelas mulheres. Cria-se um conjunto de características consideradas maternais e portanto, inerentes a todas as mulheres, por exemplo: cuidado, dedicação, paciência, compreensão, instinto maternal, altruísmo, entre outros.
Nas últimas décadas, as mulheres vêm conquistando, ainda que aos poucos, sua independência. Atualmente, mulheres formam a maior parcela das pessoas nas universidades e também sua presença no mercado de trabalho está crescendo, apesar de que desigualdades salariais e hierárquicas baseadas em gênero ainda existirem. Seguindo essa linha de pensamento, a mãe moderna deve não só atender todas as necessidades de seus filhos e cuidar da casa, mas também ser uma profissional de sucesso, ter tempo para sair com as amigas, participar das reuniões da escola, ir ao mercado, fazer ioga, ter cabelo e unhas em dia… e é claro tudo isso com um sorriso no rosto e se mantendo super zen[1].
Isso acontece em grande parte por duas razões:
1º A mesma sociedade que cobra que mulheres sejam mães, também contribui para essa idealização exagerada da maternidade e criação desse modelo de mãe ideal a ser seguido, que não condiz com a realidade que a maioria das mulheres vivenciam.
2º Enquanto as mulheres vêm questionando papéis tradicionalmente designados a elas, o mesmo não acontece por parte dos homens, que continuam não assumindo as responsabilidades necessárias em relação à paternidade e cuidados com a casa, por exemplo.
Como o cinema retrata a imperfeição da maternidade
Basta olharmos para dois dos filmes indicados ao Oscar desse ano: “A Filha Perdida”, dirigido por Maggie Gyllenhaal e “Mães Paralelas”, dirigido por Pedro Almodóvar. Ambos os filmes tratam do tema maternidade a partir de uma ótica pouco explorada no cinema tradicional e mainstream[2], mas que vem crescendo nos últimos anos, ao mostrar uma realidade vivida por muitas mães que, ainda é considerada um grande tabu: mães que amam seus filhos, mas não amam ser mães.
A Filha Perdida conta a história de Leda (Olivia Colman/Jessie Buckley), que decide tirar férias na Grécia, longe das duas filhas. Na viagem, Leda conhece a jovem Nina (Dakota Johnson) e sua extensa família. O encontro desperta a revisão de momentos dolorosos de seu passado como mãe e também como filha.
Já, Mães Paralelas é a história de Janis (Penélope Cruz) e Ana (Milena Smit), que se encontram pela primeira vez no hospital, quando estão prestes a dar à luz e a partir daí a jornada das duas mães se desenvolve ao longo do filme. Apesar das semelhanças entre as duas (ambas são mães solteiras e nenhuma das duas planejou a gravidez), as diferenças entre seus mundos acabam trazendo duas perspectivas sobre a maternidade: enquanto Janis é mais velha, financeiramente independente e já expressava vontade de ser mãe, Ana é uma adolescente sem amparo dos pais e que acabou engravidando depois de ser vítima de violência sexual. A história das duas acontece, paralelamente, com a luta de Janis contra a burocracia governamental para realizar uma escavação, em seu povoado de origem, e tentar recuperar os restos mortais de seu bisavô e de outros homens que foram mortos durante o regime fascista de Francisco Franco [3].
Os dramas premiados Três Anúncios Para Um Crime (2017) e Precisamos Falar Sobre Kevin (2011) também retratam mães que não se encaixam no padrão pré estabelecido, já que ambas têm uma relação conturbada com os filhos e apresentam comportamentos considerados “não maternais". No gênero de terror/suspense, o filme Swallow (2019) mostra como muitas vezes mulheres acabam “engolindo” uma vida que não desejam para se encaixarem na norma. E O Babadook (2011) utiliza o monstro fictício, que dá nome ao filme, como metáfora para falar dos efeitos da depressão pós-parto, uma doença duplamente estigmatizada: primeiro por se tratar de uma doença mental e segundo, por ser relacionada à maternidade e a falta de conexão entre mãe e bebê.
Mães imperfeitas e pais medianos
Outro aspecto importante que podemos observar é como os comportamentos das mães presentes nos filmes mencionados anteriormente são vistos como atípicos e chegamos a pensar que essas mães não amam seus filhos. Porém, quando os mesmos comportamentos acontecem por parte dos pais tudo é visto com normalidade, pois é assim que a paternidade é retratada em grande parte dos filmes. O papel do pai é visto como o de provedor, pouco presente na vida dos filhos, mantendo certa distância e se envolvendo apenas quando é necessário, apesar disso o amor por seus filhos não é questionado. Podemos ver essa dinâmica ilustrada na série Mad Men (2007), que conta a história do protagonista Don Draper, um requisitado publicitário que vive em Nova Iorque. A rotina de Don, suas relações pessoais e profissionais, acabam mostrando as mudanças sociais e morais dos Estados Unidos na década de 1960. Don aparece inicialmente casado com Betty, com quem tem dois filhos (Sally e Bobby), e com o passar dos episódios observamos que nenhum dos dois não são bons pais. Porém, enquanto o comportamento de Betty é visto como frio, não maternal e não amoroso, o de Don é visto com normalidade e compreensão. Apesar de ambientada em 1960, podemos observar que o papel de Don como pai não é tão diferente do que ainda vemos atualmente.
Uma mãe imperfeita ainda pode ser uma boa mãe
Não existe nada errado com o desejo de ser mãe, da mesma maneira como não há nada de errado em não compartilhar desse desejo, e, portanto, é importante que nós, mulheres, tenhamos a opção de escolher e sermos respeitadas por nossa escolha. Já está mais do que na hora de nós, como sociedade, entendermos que mulheres são mais do que os papéis tradicionalmente atribuídos ao seu gênero. Não é dever da mulher suprir as expectativas fantasiosas colocadas em cima de nós e também vale lembrar que mesmo quando se torna mãe a mulher não deixa de ser amiga, irmã, filha, esposa, etc. A mulher-mãe não deixa de ser mulher.
“Mulheres têm mentes e almas, além de corações. Temos ambição e talento além de só beleza. Estou tão cansada de ouvir as pessoas dizendo que o amor é tudo para que uma mulher serve.” - Jo March (Little Women, 2019)
[1] A palavra Zen virou sinônimo de uma vida equilibrada, espiritualizada, leve e cheia de auto realização. É manter um estado de tranquilidade mesmo diante das adversidades da vida.
[2] Mainstream refere-se a uma tendência ou moda dominante. Este conceito está geralmente relacionado com o mundo das artes como: música, filmes, literatura e etc.
[3] Conhecido como Franquismo, foi um regime político ditatorial fascista aplicado na Espanha sob comando do general Francisco Franco (1892-1975), que esteve no poder do país de 1939 a 1975, quando morreu.
Referências bibliográficas
Foto capa: Still do filme A Filha Perdida (2021)
fonte: IMBD - Internet Movie Database
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