*Este artigo foi selecionado na 1ª Chamada Aberta*
Desde o final dos anos 1980, com destaque para os Estados Unidos, ainda mais sob a presidência neoliberal de Ronald Reagan[1], o cinema passou a transmitir sentimentos de solidão e individualismo exacerbados, como se a morte da sociedade fosse um fato acabado e o bem coletivo deixasse de ser um objetivo mundial, uma mera promessa vazia de outros tempos. Filmes como "Robocop - O Policial do Futuro" (1987) e "Eles Vivem" (1988) já tratavam do tema, satirizando o mundo ao seu redor a partir de um futuro distópico imaginado pela miséria do presente.
Porém, isto não foi processo exclusivo dos filmes de ficção científica. O cinema policial, um dos pilares de Hollywood, responsável por várias produções campeãs de bilheteria, também se conectaram ao fenômeno, como é o caso de "Fogo Contra Fogo" (1995), em que os criminosos e policiais abrem mão de qualquer senso moral, movidos por dinheiro e prontos para largar tudo e todos ao primeiro sinal de perigo. Ninguém é insubstituível, afinal, o modelo socioeconômico vigente serve para homogeneizar as mentes, fazendo com que os seres humanos percam suas individualidades, corações e até seus corpos. Claro que o capitalismo operava de forma semelhante em outros períodos históricos, contudo, a partir da lógica neoliberal, tais fundamentos se intensificam e muitas esferas da vida social ficaram subordinadas às estruturas de opressão econômica.
Robert De Niro em “Fogo Contra Fogo” de Michael Mann. Fonte: FictionMachine.
Mesmo quando os sujeitos estão em momentos de lazer, a culpa da produtividade insiste em ocupar suas mentes, permitindo horas e horas de trabalho não remunerado, defendido por expressões bizarras como “workaholic” e afins[2]. Ao mesmo tempo, dependemos dos coachs[3] e outras categorias sociais para nos comportarmos melhor, condicionados por uma ideia de produtividade constante, paralelamente a uma vigilância velada, pronta para julgar aqueles que estão condenados pela inércia.
Em diversos autores e entusiastas dessa forma econômica, é comum encontrar argumentos contra a presença excessiva do Estado na vida das pessoas, defendendo que o neoliberalismo, como o próprio nome indica, pauta-se pela defesa dos valores individuais, contra a opressão institucional. Entretanto, o neoliberalismo intervém, justamente, nas zonas de conflito, fazendo com que a livre-iniciativa e o empreendedorismo reinem em meio a uma sociedade despolitizada, em detrimento de quaisquer associações coletivas, presentes na natureza da luta de classes[4]. Ou seja, o neoliberalismo mente até mesmo sobre sua definição, escondendo-se por trás de uma falsa pureza individual, quando na verdade, o sistema opera a partir de uma totalidade alienante. No campo das artes, tal mentira também está presente, ultrapassando a própria ideia de cultura e formando uma atmosfera de opressão, uma barreira invisível que limita pensamentos e ações[5].
A televisão também reagiu ao contexto aqui descrito, a série “The Boys” (2019), por exemplo, glorificada por diversos setores progressistas como crítica social às grandes corporações e ao monopólio da informação, sendo financiada pela Amazon e provocando uma imensa contradição entre conteúdo e produtor, demonstrando como o “mundo real” está longe de ser maniqueísta. O bem e o mal não são parte de uma épica luta entre heróis e vilões, como o final de um filme da Marvel Studios. A realidade é muito mais complexa, pois está mediando e sendo mediada pela cultura, enquanto nós aplaudimos qualquer forma de arte, sem pensar nos efeitos morais por trás delas.
Assim, a própria crítica ao neoliberalismo serve como alimentação para o mesmo, que se apropria das resistências e cria produtos palatáveis para todos os gostos, desde daqueles preocupados com os rumos da economia mundial e a alienação de seus companheiros, até daqueles que não podiam se importar menos, satisfeitos com o que o algoritmo irá oferecer a seguir.
No Brasil, a lógica neoliberal serviu até mesmo como ingrediente para filme de terror: “Trabalhar Cansa” (2011) da dupla Juliana Rojas e Marco Dutra, no qual o medo não está mais em seres de outro planeta ou num futuro aterrorizador para a humanidade, mas sim, nas relações do tempo presente e nos desempregados de um país profundamente desigual. Outro exemplo, é o longa francês “Dois Dias, Uma Noite” (2014), que trata da ansiedade decorrente das políticas neoliberais de ataque ao trabalho organizado e a minimização dos tópicos de saúde mental, não interessantes para um sistema no qual a produção não pode parar.
Os exemplos são vários, porque a estrutura neoliberal não é restrita a um só país ou continente, estando presente na vida de milhões de sujeitos como eu e você, ainda que não conscientes disso. Como o próprio ditado diz, o maior feito do neoliberalismo foi fazer todos acreditarem que ele não existe. Felizmente, o cinema tem se mostrado uma janela aberta para o tema, dialogando com situações e opressões do presente, dados os limites que o audiovisual possui enquanto produto. Histórias simples, metáforas escondidas em um gênero de grande circulação ou até mesmo as contradições de uma série produzida por quem ela diz fazer oposição possuem muito a dizer acerca do modelo econômico que rege o mundo há décadas.
[1] A partir dos anos 1970, diversos intelectuais e políticos uniram-se em torno de um modelo econômico contra o chamado Estado de Bem Estar Social. Por várias partes do globo, incluindo no Brasil, o mercado passou a orientar diversas políticas.
[2] Expressão para designar pessoas supostamente viciadas em trabalho, quando na verdade, estão sendo exploradas até o seu limite mental.
[3] Pessoas, muitas vezes sem formação profissional ou acadêmica definidas para esse tipo de orientação, que “ajudam” os outros a controlar seus sentimentos e otimizar suas relações pessoais e de trabalho.
[4] SAFATLE, 2021, p. 18.
[5] FISHER, 2020, p. 33.
DUNKER, Christian; DA SILVA JUNIOR, Nelson; SAFATLE, Vladimir. Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. São Paulo: Autêntica, 2021.
FISHER, Mark. Realismo Capitalista: é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim capitalismo? São Paulo: Autonomia Literária, 2020.
Comments