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Julio Tude d'Avila

O homem em algum lugar

Atualizado: 5 de jul. de 2022

Sim, eu me lembro do homem, ainda que ele caísse no esquecimento pouco tempo depois de ter paralisado nossas vidas. Queríamos esquecê-lo, se me lembro bem do sentimento. Eu fui um dos que o viram ao vivo, quando apareceu na telona. Fazia qualquer coisa de banal pelo centro quando trombei com alguém que havia estancado na rua. Reparei que outros estavam travados, como se rosqueados pelos pés. Acompanhei a linha de seus olhares e vi, na tela imensa que veiculava a publicidade do momento, o vídeo do homem e, embaixo, as palavras “ao vivo”. Era um homem nu, de barba volumosa e grisalha, seu cabelo igualmente marcado pela idade. Deitado na cama de um quarto branco, com paredes de vidro. Não víamos a porta do quarto, nunca soubemos se tinha uma. A câmera captava a cama, um quadro pendurado à frente do homem, o vidro que o cercava e o espaço de fora. O homem não fazia nada de especial, só olhava para o quadro, que não víamos inteiramente, mas depois de muita investigação decidiu-se que só podia ser o quadrado negro de Malevich. Nunca acreditei nisso. Nossa visão parcial da cena só permitia ver uma parte preta do quadro, mas nada nos garante que não havia uma infinidade de outras imagens ali, no ponto cego da câmera. Do jeito que o homem olhava, não me desce ser só um quadrado preto. Víamos que depois das paredes de vidro havia um pouco de grama e, de repente, uma muralha branca. Na verdade, só sabíamos que a muralha era tão alta quanto conseguíamos ver ali, mas supusemos que ela era imensa, robusta, bloqueando o homem do mundo lá fora. O vídeo não durou mais que cinco minutos, e o governo logo cortou a luz do local, até que a empresa responsável emitiu uma nota explicando que haviam sido vítimas de algum hacker que quis colocar um vídeo pornográfico. Algumas pessoas deram o assunto por encerrado, mas outras lotaram a internet com teses, pesquisas, relatos sobre quem o homem poderia ser, e, principalmente, aonde ele estava. O extraordinário foi que aquele vídeo percorreu o mundo, e ninguém apareceu afirmando reconhecê-lo. Nenhuma família, parente ou amigo distante. Eventualmente tornou-se corrente a ideia de que era uma transgressão da vanguarda artística, o que fez sentido para muitos, porque foi logo depois do escândalo do Guggenheim, quando um grupo de artistas milionários comprou aquele quadro dos telhados vermelhos de Cézanne e o chamuscou com um lança-chamas. Os desconfiados perderam o fôlego defendendo que eventualmente veríamos o homem de novo, e as diferentes hipóteses sobre aquilo manchavam umas às outras, dando a todas a aparência de bobagem, enrolação ou estupidez, simplesmente. Aquilo nunca me tomou tempo fora do comum. Devo ter reassistido ao vídeo algumas vezes, não fiz pesquisa pessoal, acompanhava com pouco interesse o caso pela internet, mas pensava no homem em momentos de silêncio. Uma organização de direitos humanos tentou emplacar um manifesto “O HOMEM ESTÁ PRESO”, que ninguém levou a sério. Ainda que estivesse, parecia estar em um nível de paz estranho para nós. Talvez reparasse na câmera, visse seu reflexo de uma forma diferente, mas o estado geral era de paz. Podia nunca ter conhecido o mundo, sido sequestrado quando criança. Para lhe dizer a verdade, eu às vezes penso nele, e espero que esteja bem.

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