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Laura Lopes

O imperialismo distorceu nossos referenciais?

Os países de “1º mundo” são realmente os mais desenvolvidos ou o imperialismo distorceu nossos referenciais?


O que mais fazemos como seres humanos desde a saída do útero até o último suspiro antes da morte é cultivar relações sociais: estabelecemos interações (das mais variadas formas) com outras pessoas para absolutamente qualquer fim que possamos imaginar existir; interações essas que não são isoladas. Elas pertencem ao que podemos idealizar como uma rede que nos envolve em diversas dimensões, dentro da qual realizamos uma dança incessante de ação e reação. Ou seja, conviver em sociedade nos forma como indivíduos e, ao mesmo tempo, são os indivíduos que compõem o meio social. Dessa forma, inevitavelmente, carregamos em nossa particularidade comportamentos, pensamentos e emoções que vieram de fora, dos outros. Esse processo é sorrateiro, se dá pela cultura que nos inunda e nos reveste.


Porém, após muito chão caminhado pela história da humanidade, cá estamos, completamente globalizados. As mais remotas partes do mundo parecem mais próximas do que nunca. Essa sensação de onipresença[1] semeia, da mesma forma, desejos-ambições- impressões (ideias, basicamente) a respeito do mundo como o conhecemos. Nesse aspecto, existem as ideias que são supremas, que aparecem em nossas associações- e que se alocaram em nosso inconsciente.

Tais ideias não são órfãs. Se tomarmos como exemplo o processo histórico de colonização dos países da América e da África, o que mais se encontra é devastação e imposição. Devastação de território, da natureza. Imposição de crenças, de poder, de valores, de concepções de mundo. Os países europeus - e, em algum momento, os Estados Unidos e até mesmo o Canadá - instituíram pensamentos em todos aqueles que foram dominados, retirados de suas terras. Eles ditaram quais religiões eram válidas, introduziram os ritos e o calendário cristão como oficiais; impuseram idiomas, códigos de vestimenta, formas de moradia e consumo; propagaram seus próprios hábitos e estabeleceram padrões ideais de vida, de expressão e de existência.


O termo “imperialismo” se estrutura a partir de todas essas estratégias de controle. Seus efeitos, filhos da violência e da manipulação, afetaram uma infinidade de práticas culturais, senão culturas inteiras ao redor do globo, muitas das quais os povos sucumbiram ao extermínio[2].


Atualmente, os países responsáveis pela devastação da maior parte do planeta ocupam a posição de exemplo. Exemplo de desenvolvimento e progresso. O que isso significa? Significa, sobretudo, que possuem capital e estrutura para proporcionar os indiscutíveis direitos aos sistemas de educação e saúde de qualidade. A questão central é que, naturalmente, a associação com a tecnologia é imediata. Tecnologias industriais, automatizadas, digitais, científicas e cada vez mais minimalistas: todas essas participam da cultura predominante que nasceu da colonização.


Dito isso, esses instrumentos tecnológicos para promover o pleno funcionamento da sociedade são ideais? Certamente que sim…Cada povo estabelece suas normas sociais de acordo com a própria lógica. A reflexão que deverá pairar aqui é: tais métodos não são supremos, superiores ou melhores. As culturas são incapazes de emitir um juízo verdadeiro sobre outras porque não seguem a mesma lógica e tampouco têm a mesma trajetória.


Os países da América Latina ou África não se desenvolveram? É nítido que não da mesma forma que o Hemisfério Norte. Enfrentam hoje, inclusive, muitos problemas sociais e econômicos. Mas é importante lembrar que, antes da invasão imperialista, nesses lugares habitavam - e, em menor escala, ainda habitam - povos que não utilizavam de nenhuma tecnologia artificial. Povos cuja cultura nada se assemelha ao modo de vida urbano, ocidental e globalizado; cuja lógica de existência não segue um sistema de produção e consumo.


O povo Krenak (também nomeado Aimoré), comunidade indígena que vive - e resiste - nas margens do Rio Doce, em Minas Gerais, concebe os elementos presentes na natureza como manifestações de seus antepassados. O próprio Rio Doce é conhecido por eles como “Watu” e representa a figura de um avô, constituindo parte da identidade Krenak. Ou seja, entende-se o rio como uma entidade, um familiar, não um recurso. Assim como a própria natureza. A lógica europeia (que hoje permeia o Ocidente) não utiliza de simbologias místicas como essa. Vê a natureza como um objeto isolado, externo à humanidade; um agente inconsciente, passivo e disponível para infindável extração e manipulação.


Com isso, é importante ressaltar que é natural que sejamos condicionados a olhar e lidar com o mundo sob nossa própria concepção individual e coletiva. A cultura que nos envolve internaliza juízos de valor, motivações, interesses e visões desde o momento que aprendemos a nos comunicar. Isso cria um sistema de referências, uma maneira própria de expressão e satisfação das aspirações humanas de cada povo.


Entretanto, é necessário reconhecer a diversidade. Normalizar a diferença. A forma como aprendemos a encarar o que existe à nossa volta é adequada para nós, não significa que cabe a todos. Novamente, cada sociedade se estrutura conforme suas necessidades. Existem organizações sociais que encontram na natureza um vínculo com seus antepassados, que não precisam da tecnologia artificial, da Internet ou da medicina ocidental e isso não configura atraso, ignorância.


Diante de tantos estudos de campo realizados ao redor do mundo que testemunham a existência de sociedades “não tradicionais” [3] com características tão complexas quanto a nossa, termos como primitivo e selvagem têm se tornado ultrapassados.


O bárbaro é, em primeiro lugar, o homem que crê na barbárie, disse Lévi-Strauss, um dos maiores nomes da Antropologia e precursor do desmonte do pensamento que hierarquizava culturas. Sob esse pretexto de hierarquização, pelo estranhamento e incompreensão, milhares de culturas consideradas inferiores e até mesmo malditas pelos países imperialistas foram dizimadas.


Reconhecer o peso da perda de grande parte da diversidade cultural abre nossos olhos para a magnitude da necessidade de preservar o que resiste.


Vale lembrar também que, por mais distintas que sejam as culturas, elas se cruzam, se chocam e deixam marcas umas nas outras o tempo todo, naturalmente. Basta o mínimo contato. O imperialismo forçou religiões, costumes e idiomas e escravizou indivíduos. Porém, o processo cultural de convergência e troca acontece espontaneamente e contribui para o aumento da diversidade.


Por fim, é fundamental ter em mente que as culturas não se originaram no mesmo ponto de partida com a pretensão de chegar ao mesmo fim. Cada uma delas possui trajetórias paralelas e critérios distintos para o que se considera desenvolvimento. A referência imperialista é muito forte e se espalha por todos os lugares, mas a reflexão e o reconhecimento de outras perspectivas pode expandir nosso entendimento de tudo que conhecemos.


Segue abaixo um trecho de “Agoniza Mas Não Morre”, canção de Nelson Sargento, interpretada pela consagrada sambista carioca Beth Carvalho, que diz muito, em poucas palavras, sobre os efeitos do imperialismo:



“Samba,

Inocente, pé-no-chão,

A fidalguia[4] do salão,

Te abraçou, te envolveu,

Mudaram toda a sua estrutura,

Te impuseram outra cultura,

E você nem percebeu…”



Bibliografia:

-KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Editora: Companhia das Letras, 2019.

-LÉVI-STRAUSS, C. “Raça e História” in Antropologia Estrutural II Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1976.

-SZTUTMAN, Renato. Natureza & cultura, versão americanista: um sobrevoo. Ponto.Urbe - Revista do Núcleo de Antropologia Urbana da USP, São Paulo, v. 3, n. 4, 2009.

-Maior genocídio da Humanidade foi feito por europeus nas Américas: 70 milhões morreram:https://dialogosdosul.operamundi.uol.com.br/direitos-humanos/58765/maior-genocidio-da-humanidade-foi-feito-por-europeus-nas-americas-70-milhoes-morreram


[1] onipresença: Que pode ser encontrado em todos os lugares; que está em toda ou qualquer parte

[2] “No México, foram assassinados 20 milhões, nos Estados Unidos, 18 milhões, nos países andinos foram mais de dez milhões, no território brasileiros mais de quatro milhões. Todas essas mortes foram por massacre provocado por tropas militares, enfermidades, fome, trabalho forçado, castigos corporais em regime de escravidão, deslocamentos para lugares inóspitos.” Paulo C. Filho, editor da revista Diálogos do Sul

[3] “grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos por tradição". Exemplo: quilombolas, indígenas, ribeirinhos, ciganos. (http://www.dedihc.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=156)

[4] fidalguia: Nobreza; qualidade de fidalgo, nobre ou aristocrata.





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