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Gabriel Benatti e Renato Murad

O lado eurocêntrico da força: uma definição de imperialismo pela cultura pop

Atualizado: 3 de out. de 2021

Há não muito tempo atrás em uma galáxia não muito distante, em nossa infância e adolescência, somos especialmente bombardeados com elementos da cultura pop que guardam símbolos e valores dos quais ainda não temos pleno conhecimento. Seja num filme da Disney que carrega narrativas e fábulas de séculos de idade, ou nas referências à guerra fria nos filmes da Marvel, sempre é possível extrair uma estrutura mais complexa desses materiais, afinal, todos participam de uma realidade histórica específica.

O próprio George Lucas, criador de Star Wars, afirmou que a Guerra do Vietnã serviu como inspiração e o fez pensar, historicamente, “como democracias viram ditaduras” [1]. Na trilogia original, os vilões justificam as ações do “império” através das noções de liberdade, segurança e justiça, materializado em um genocídio — em vários dos filmes da franquia são apresentados momentos em que, com o poder da Estrela da Morte, incontáveis planetas são totalmente destruídos.


Ainda que em um universo altamente ficcional, Star Wars reinterpreta o conceito de imperialismo, mas antes de chegar às telas do cinema, essa palavra viajou através do tempo. Suas origens remontam aos romanos, que se utilizavam da palavra imperium para se referir à autoridade exercida sobre o cidadão. Gradualmente esse vocábulo passou a ser usado para tratar do poder exercido por Roma sobre outras territorialidades [2]. No século XIX, numa tentativa de resgatar a suposta glória e imagem imponente dos romanos, os britânicos derivaram do imperium, em latim, a palavra imperialismo. Naquele contexto, a Grã-Bretanha possuía um império tão grande que ficaria conhecido como “o império em que o sol nunca se põe”.


Entretanto, essa visão não se limitava aos britânicos. Uma “corrida”, em especial, entre as potências europeias da época, pretendia dominar novos mercados, a fim de reparar a crise capitalista que recentemente havia se instaurado. Nas palavras do historiador Eric Hobsbawm: “entre 1876 e 1915, cerca de um quarto da superfície do globo foi distribuído ou redistribuído, como colônia, entre meia dúzia de Estados”[3]. É no bojo desse processo, usurpador de terras alheias — mais especificamente de Ásia e África — que o imperialismo se define como uma prática política e, acima de tudo, uma visão de mundo. O discurso assumido por tais nações pretendia justificar a violência exercida através de uma hierarquização de raça, pressupondo o europeu como superior. Era o chamado “The White Man’s Burden” (O Fardo Do Homem Branco) uma relação na qual o branco tinha uma “obrigação messiânica” de levar a "civilização" aos povos “inferiores”, validando a invasão, o saque, a exploração e as mortes das populações nativas daqueles continentes.

Ali se estabelecia uma relação umbilical entre colônia e metrópole, territórios sobrepostos que dividiam narrativas, entrelaçadas pelas idas e vindas de seus habitantes[4]. O poder de contar histórias, apropriado pelos europeus, foi capaz de “esculpir" os colonizados, criando estereótipos e adjetivos que marcaram um “orientalismo” e um “africanismo” extremamente genéricos. É a partir dessa construção que se fundamentou a concepção de dois grandes mundos tratados como opostos: o Oriente e o Ocidente.


Dessa forma, no controle da narrativa, o europeu assumiu caráter de centralidade na escrita da História do Mundo que passou a ser eurocêntrica. Não à toa, a História como nicho do conhecimento será criada a serviço dessa concepção de mundo. Quando aprendemos na escola a visão quadripartite da “linha do tempo” (Idade Antiga, Idade Média, Idade Moderna, Idade Contemporânea), os marcos ali apontados não dizem respeito a nenhum outro local que não a Europa. Não é exagero falar que a Europa roubou a história do resto do globo, e a “endeusou” como “Ocidental”, como afirma Jack Goody em seu livro “O Roubo da História”. O autor posiciona o quão contraditória é essa história “oficial” que aponta a origem de instituições-chave como “democracia”, “capitalismo” mercantil, liberdade, individualismo, amor e família, como sendo puramente Ocidentais, quando, na verdade, também têm origem Oriental[5].


Com o tempo, felizmente, muitos historiadores foram capazes de romper com as bases desse conhecimento, de via de mão única e eurocêntrico, apresentando novas versões e críticas àquelas narrativas. Ainda assim, é importante afirmar que a lógica imperialista nos discursos e nas práticas político-econômicas segue opondo um “lado de cima” e um “lado de baixo” do planeta, mudando apenas os personagens de uma velha história. Os Estados Unidos, parecem ser os naturais herdeiros da tradição do colonizador, e marcam sua influência cultural através de produtos, filmes, música e guerra.

Quando somos capazes de analisar o entretenimento consumido sob essa ótica, é possível traçar uma série de críticas para muitos dos heróis que as telonas hollywoodianas exibem para todo o mundo. Indiana Jones, o icônico herói criado por George Lucas e Steven Spielberg, muito conhecido por espancar nazistas e inspirar jovens aspirantes a arqueólogos e historiadores, como os autores desse texto, possui uma faceta contraditória e menos discutida. Logo nas primeiras cenas do filme “Os Caçadores da Arca Perdida” (1981), o protagonista está literalmente roubando um artefato religioso de algum país, subentendidamente sul-americano, das mãos de uma tribo indígena a fim de levá-lo para um museu nos Estados Unidos. A frase “This belongs in a museum” (“Isso pertence a um museu”) chega a ser falada por Indiana, realçando a figura de um representante do imperialismo, um “assaltante” da história alheia.

Apesar do nosso amor pela cultura pop, o arsenal de críticas a respeito dessa franquia e muitos outros filmes clássicos não para por aqui. Assim, é preciso substituir esse modelo de interpretação do mundo, encontrando novos caminhos, rompendo com a oposição entre o Ocidente e o Oriente e, entre o Norte e o Sul geopolíticos. O “roubo da história” deve ser julgado não só por historiadores mas por todo produtor de conhecimento.



Notas de Rodapé:

[2] ECKSTEIN, A. M. Conceptualizing Roman Imperial Expansion under the Republic: An Introduction. In: ROSENSTEIN, N.; MORSTEIN-MARX, R. (Eds.). A Companion to the Roman Republic. Oxford: Blackwell, 2006, p. 568

[3] HOBSBAWM, Eric J. Era dos impérios: 1875-1914. São Paulo: Editora Paz e Terra S/A, 2005.

[4] SAID, Edward. Cultura e Imperialismo. Trad. Denise Bottman. São Paulo: Cia das Letras, 2011.

[5] GOODY, Jack, O roubo da história, São Paulo, Contexto, 2008. p.11

Referências bibliográficas:

ECKSTEIN, A. M. Conceptualizing Roman Imperial Expansion under the Republic: An Introduction. In: ROSENSTEIN, N.; MORSTEIN-MARX, R. (Eds.). A Companion to the Roman Republic. Oxford: Blackwell, 2006.

GOODY, Jack, O roubo da história, São Paulo, Contexto, 2008. HOBSBAWM, Eric J. Era dos impérios: 1875-1914. São Paulo: Editora Paz e Terra S/A, 2005.

SAID, Edward. Cultura e Imperialismo. Trad. Denise Bottman. São Paulo: Cia das Letras, 2011.


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