Eu sou homem, Deus, Napoleão, Robespierre, tudo
junto. Eu sou Robespierre, um Monstro. Tenho que ser
morto.
- Grito de um paciente num hospício parisiense do século XIX.
Partindo do pressuposto que a nomeação e definição dos nossos arredores é resultado de uma longa sucessão de construções históricas que variam ao longo do tempo e do espaço, pode-se inferir que a forma como a sociedade trata certos comportamentos nem sempre foi a mesma dos dias de hoje. Um interessantíssimo exemplo disso é como a concepção de “loucura” em autoridades foi mudando ao longo do tempo e adquiriu uma nova faceta a partir do século XVIII na Europa, tornando-se uma ferramenta de poder. O historiador britânico Roy Porter, em sua obra Uma História Social da Loucura, explora esse tema ao trazer no centro da discussão relatos autobiográficos de loucos, da Idade Média até hoje, mostrando os seus registros de loucura e suas atitudes em relação ao tratamento que lhes era dado pela sociedade, médicos e psiquiatras.
“Ivan, o Terrível, e o Seu Filho Ivan em 16 de Novembro de 1581” (1885) de Ilia Repin.
No capítulo Loucura e Poder, Porter faz uso da frase que introduz este artigo para afirmar que a história da loucura é a história do poder. Ao mesmo tempo em que a loucura é uma forma de onipotência[1], em que o louco acredita ser uma força divina, ele também se sente impotente, um “monstro” a ser controlado por uma autoridade, por um exorcista. Todavia, quem controla o exorcista quando ele mesmo vira o monstro? Em outras palavras, o que acontece quando uma figura de autoridade, como um rei, símbolo de um poder incontestável que representa a personificação do divino, da ordem e razão, encontra-se em um estado de loucura?
O personagem Aerys II Targaryen, o Rei Louco, na série “Game of Thrones”.
Segundo Porter, por muito tempo, o enlouquecimento de figuras de autoridade foi frequentemente visto com um teor simbólico e relativamente positivo ao invés de uma ameaça à sociedade. Lendas e histórias gregas antigas são repletas de governantes enlouquecidos em função das próprias ambições, retratados como mensageiras dos deuses, figuras sábias que tinham a capacidade de enxergar o mundo de forma inédita. A teologia cristã muitas vezes narra a visitação da loucura aos poderosos como um castigo que carrega o julgamento da vontade divina e irá resultar em uma verdadeira bênção.
No entanto, a partir do século XVIII, por toda a Europa, essa relação de poder e loucura apresenta uma nova nuance, quando a concepção de doença começa a ser associada ao exercício do poder. A ideia de que monarcas e generais enlouqueciam pela ambição tornava-se cada vez mais presente na linguagem, tanto do discurso político da oposição, quanto das classes dirigentes que, por incrível que pareça, associavam a instabilidade mental dos poderosos a uma condição exclusiva da alta sociedade, supostamente perturbada pelo preço da genialidade e a pressão do poder. Entretanto, a maior responsável pela popularização dessa ideologia que “enobrecia” perturbações mentais foi a emergência da medicina na Europa, em especial dos “médicos de loucos”, responsáveis por teorizar a noção da psicopatologia da “paixão pelo poder”, através do tratamento de pessoas que se enxergavam como papas ou imperadores imortais e ricos. Benjamin Rush, o pioneiro da medicina americana, ampliou esse diagnóstico ao afirmar que até mesmo o radicalismo e o ato revolucionário eram doenças mentais, ideia que foi vastamente difundida pelo filósofo Edmund Burke ao estabelecer, por toda a Inglaterra, que a Revolução Francesa teria sido um ato público de loucura.
Aos poucos, esses médicos começaram a ganhar uma forte notoriedade na Europa, muitas vezes retratados com um chicote na mão devido aos seus métodos e técnicas de tratamento psicológico punitivo. Parafraseando Porter, em seus manicômios particulares os “médicos de loucos” assumiam a roupagem de generais e eles próprios tinham, então, um gosto pelo poder. Poder ainda mais intensificado quando eram requisitados para o tratamento dos “reis loucos”, como foi o caso do Dr. Francis Willis, convocado em 1788 para tratar do rei Jorge III do Reino Unido, afastado do trono por conta de suas perturbações. Jorge sofria de porfia, um distúrbio metabólico hereditário que produz intensa irritação e delírio, induzindo crises de loucura que culminariam em demência senil. Segundo os relatos, Willis seguia sem medo o seu posto de psiquiatra, exercendo um verdadeiro "adestramento" de Jorge através de castigos em camisa-de-força, transformando a figura do rei em um verdadeiro objeto psiquiátrico.
No capítulo em questão, Roy Porter mostra os bastidores do que representa uma verdadeira revolução simbólica em relação à figura do rei. Em meio a crise do absolutismo e a ocorrência da Revolução Francesa[2], essa figura que antes era vista como um poder religioso, que não podia ser olhada diretamente nos olhos e que curava milagrosamente doentes apenas com o toque, agora podia ser controlado pelo diagnóstico, a força bruta e a linguagem autoritária de um médico. Assim, a dinâmica de poder da figura de autoridade é alterada e, como evidenciado constantemente na História da humanidade, a necessidade dos pequenos imitarem os grandes é novamente posta a prova, como um Ouroboros[3], que em espiral come o próprio rabo.
“Jorge III do Reino Unido” (1819) de Charles Turner.
[1]: Onipotente: ser que apresenta a qualidade divina do poder ilimitado.
[2] No fim do século XVIII, contexto de uma forte crise econômica e social, a França vai ser palco da Revolução Francesa, marco do fim da Idade Moderna e o começo da Idade Contemporânea. De forma extremamente resumida, o evento vai representar a abolição dos privilégios de nascimento que desenvolveram a base da estrutura social do Antigo Regime (dividido em clero, nobreza e terceiro estado desde a Idade Média) e estabelece os privilégios do capital.
[3]: Ouroboros: Ouroboros é um conceito simbolizado por uma serpente — ou por um dragão
— que morde a própria cauda. O Ouroboros costuma ser representado pelo círculo, o que parece indicar, além do eterno retorno, a espiral da evolução, a dança sagrada de morte e reconstrução.
Referências bibliográficas
PORTER, Roy, Uma história social da loucura, Rio de Janeiro, Zahar, 2ª ed., 1991, p.54-79.
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