Calida Garcia Rawles (1976) é uma artista que estudou artes em Nova York e atualmente vive em Los Angeles. A principal característica de suas pinturas é a onipresença da água e a – quase – onipresença de figuras humanas: ou emergidas na água, ou boiando, ou nadando… A artista contou, em uma palestra no Anderson Ranch Arts Center [1] (2022), que a água só foi se tornar um elemento importante quando começou a fazer aulas de natação depois de seus 30 anos. Foi neste momento que o elemento a encantou, tanto no sentido físico (de como ela se sentia bem dentro da água) quanto no sentido espiritual e no estético (de como a incidência da luz dentro da água a chamava atenção).
Logo, pesquisando mais sobre esse assunto, principalmente em relação a "Water Memory Theory"[2], que, de acordo com ela, é uma teoria que estuda a capacidade da água de reter a memória de substâncias que foram nela dissolvidas, ou até mesmo de ter memória emocional. Calida, como uma artista negra, logo se lembrou da "Passagem do Meio", rota do comércio de escravos no Atlântico, e quantos corpos negros já haviam passado pela água, porém não com uma experiência prazerosa ou de lazer, mas sim devido a algo extremamente violento e desumano, em que entravam em contato com a água por que estavam mortos ou para morrer, como se o oceano Atlântico fosse um grande cemitério de corpos pretos. (RAWLES, 2022)
Então, Rawles começou a traçar a relação entre as pessoas pretas dos Estados Unidos com a água. O primeiro fato que nos apresenta é que as maiores taxas de afogamento entre crianças e adolescentes são de pessoas pretas, 5.5 vezes maior do que de pessoas brancas – algo que está diretamente ligado às leis segregacionais do país. Pessoas pretas, durante muitos anos, não tinham acesso às piscinas públicas e às praias, não aprendendo a nadar. Aquele elemento, que constitui 60% do corpo de todos nós, não podia pertencer a elas. Assim, ela pensou que se começasse a pintar pessoas negras dentro da água, talvez elas começariam a pensar que esse elemento também é delas. Que, através de suas pinturas, poderia incentivá-los a se apropriar dessa substância, que é tão importante para nossas vidas quanto o ar. (RAWLES, 2022)
High Tide, Heavy Armor [3]
2021
Calida se refere a essa pintura como seu "Atlas", mas, em vez dele estar carregando o peso do céu, ele carrega a água. Para a pintora, ele está centrado, aterrado, forte. Essa criação teve origem na primeira vez que ela recebeu um vídeo viral de um assasinato de uma pessoa negra, porém, pela primeira vez, ela conhecia quem era a pessoa. Este homem era Kurt Reinhold, pai na creche em que sua filha também frequentava. Ele foi preso por atravessar no lugar errado da rua (jaywalking), algo que é passível de multa nos EUA. Foi preso e morto. (RAWLES, 2022)
Eu escolhi inserir essa obra no artigo pois, para mim, ela resume o intuito de Calida em grande parte da sua produção. Ela trabalha a partir da violência, mas usa a água como forma de reconfortar, relembrar, registrar esses casos. Fazer com que essas pessoas, por mais que não estejam mais aqui, possam sentir como ela se sente dentro da água. Em suas palavras:
"Tento encontrar a beleza nestes tempos difíceis e divisivos, tento encontrar esta grandeza, porque é assim que me sinto na água e porque a água é tão importante para mim. Quando estou nela, sinto-me tão bem, mas mesmo assim sei que é mortal ou você pode se afogar e é assustador. E é uma metáfora poética tão grande de como eu encontro e sinto sobre minha vida" (RAWLES, 2022, nossa tradução[4])
Dessa maneira, a artista inseriu mapas de todos os lugares em que as mortes policiais estavam acontecendo naquele período dentro de sua pintura, de forma mascarada na parte superior do quadro. Ela camufla os mapas dentro da água, de forma a não entregar que eles estão lá para o espectador. Mas eles estão. A pintura, à primeira vista, pode aparentar ser apenas um belíssimo trabalho de hiper-realismo da figura humana e do elemento água, mas suas camadas vão muito além disso. (RAWLES, 2022)
Calida, assim, critica através de suas obras a violência policial que está diretamente ligada com o racismo estrutural presente na sociedade. Além disso, coloca em destaque as consequências da segregação nos Estados Unidos com toda sua narrativa sobre a água. Nesse sentido, ela também está denunciandoa raiz de todo esse problema, a escravidão patrocinada pelo capitalismo. Pois, mesmo com a abolição, as feridas raciais continuaram abertas, como afirma Negro (2021, p.389): "A consequência direta é considerar o pós-abolição como um período em que o apego à supremacia branca se mantém perceptível com os linchamentos, o encarceramento em massa e a brutalidade policial". Algo que, na verdade, acontece até os dias atuais.
[1] O Anderson Ranch Arts Center é uma organização artística sem fins lucrativos localizada no estado americano do Colorado. Eles promovem palestras, workshops, residências e oficinas voltadas para o campo das artes.
[2] Teoria da Memória da Água
[3] Maré Alta, Armadura Pesada
[4] I try to find beauty in these difficult and divisive times, I try to find this greatness, because that’s how I feel in the water and why water is so important to me. When I’m in it, it feels so great, but yet I know it is deadly or you can drown and it’s scary. And it’s such a great poetic metaphor of how I find and feel about my life
Referências bibliográficas
NEGRO, Antonio. A lavoura do algodão no sul dos Estados Unidos antes da Guerra Civil: uma história de amor global entre capitalismo e escravidão. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 41, no 87, 2021. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/rbh/a/NvzZpJVqj5mYJFWDf9nmxKb/?lang=pt>. Acesso em: 01 fev. 2023.
RAWLES, Calida. Anderson Ranch Arts Center. Visiting Artist Lecture with Calida Rawles. Youtube, 10 de nov. 2022. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=V3Nt-WmGYKo&t=1295s>. Acesso em: 01 de fev. 2023.
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