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Renato Murad

O próximo movimento: Uma reflexão sobre Él Mató a un Policía Motorizado

Dia 30 de Dezembro de 2004, Buenos Aires. Muitos dos jovens que saíram de suas casas àquela noite motivados pelo fervor dos conjuntos de indie[1] e punk[2] que tomavam conta da cena cultural do país não retornariam para suas famílias. Uma tragédia que se ouviu nos jornais e na televisão por semanas e que se arrastou em um processo judicial de 2 anos que acabou por inocentar a banda Callejeros, que se apresentava naquela data na discoteca República Cromañón. Um dos fãs acendeu um sinalizador próximo ao palco, incendiando a decoração do teto, feita de um material altamente inflamável. 194 mortos, em sua maioria jovens entre 17 e 19 anos, além de dezenas de crianças, que acompanhavam irmãos, primos e pais para uma noite de rock.

O cenário era de extremo pessimismo para esse nicho da classe artística. Os anos que se seguiram contaram com o fechamento de diversos estabelecimentos como o Cromañón, que representavam o “berço” do rock argentino. Era desestimulante para as bandas investir em trabalhos autorais, com personalidade, pois sabiam que a única forma de se apresentarem ao mundo a partir dali era através de um som mercadológico e pasteurizado, longe de casas superlotadas e apaixonadas. O olhar de preconceito sobre essa cena underground, conhecida por rock chabón [3], fez com que muitos potenciais grupos se desmanchassem frente à impossibilidade de tocar para seu público cativo.

Foi da cidade de La Plata que surgiu a salvação para essa geração de artistas. Motivados por um espírito de autonomia para elaborar, gravar e produzir seu próprio som, diversos conjuntos universitários iniciam um movimento artístico. Com letras diretas, guitarras distorcidas e melodias sensíveis, o circuito platense renova o rock argentino de maneira decisiva. Nesse cenário, surge a banda Él Mató a un Policía Motorizado — para os íntimos, ou para aqueles que não desejam pronunciar um irônico e longo nome, apenas El Mató.


Foto do “El Mató” no início da carreira. Fonte: Wegow.


A banda lança seu primeiro disco naquele mesmo nebuloso 2004, sob um selo independente construído de forma coletiva com outros conjuntos da época de nome Laptra. Após a crise econômica que atingiu a Argentina em 2001, o mercado fonográfico sofreu grandes mudanças. O preço dos CDs distribuídos por grandes gravadoras disparou, e a saída encontrada pela Laptra se fez pela replicação digital dos discos, barateando custos e democratizando o trabalho dos artistas.

Essa independência acompanhou a musicalidade orgânica do conjunto, fruto de uma fusão do noise rock, mais pesado e distorcido, com o indie melódico. As letras convergem para a nostalgia e a emoção ao mesmo tempo que esbarram em temáticas políticas, revelando um projeto lírico diverso. O cenário das canções vai do bairro (como em "Amigo Piedra'') ao universo todo (como em "El Tesoro"), do clima das rodas punk (como em "Chica Rutera") ao magnetismo sideral do indie (como em "Fuego").

O vocalista e compositor da banda, Santiago Motorizado, fez de seu ofício como ilustrador e artista plástico parte do projeto visual que permeia a obra do El Mató. Todas as capas acompanham as fases da banda, assim como materiais de divulgação e clipes.


Capa do EP “El Tesoro”. Fonte: Discogs


Santiago apresenta um posicionamento político revolucionário, mas prefere não expressar em forma de música necessariamente. Afirmou há pouco, em uma entrevista para o canal Filo News, que não existe algo como "música de esquerda", e que não vê esse tipo de panfletagem como algo espontâneo. Para Santiago, a resposta vem da espontaneidade da rebeldia, do ato, da prática. O vocalista afirma, na mesma entrevista, que prefere escrever canções de amor, algo que pode causar surpresa. Ao final, não se trata necessariamente do assunto de uma canção. Santiago é um artista posicionado porque trabalha de maneira independente há quase 20 anos. Sem nenhum tostão de grande gravadora, faz do El Mató um retorno a uma forma que é quase artesanal de ingressar na cena musical, desvinculado da indústria de massa que movimenta a cultura em seu país (algo que não aconteceu com outras grandes bandas de rock da Argentina como Attaque 77 e Soda Stereo, que eventualmente migraram para selos de mais nome).

Dia 6 de Outubro de 2022, São Paulo. A banda Él Mató a un Policia Motorizado realiza um show no Cine Joia para algo como duas centenas de pessoas. O espaço vazio demonstrava que a banda pisava em um mundo estranho, onde não tinham a mesma idolatria que em sua terra natal. Ainda assim, conseguem reunir um público que mescla migrantes da Argentina e interessados em um rock cantado em espanhol. Já mais velhos, Santiago canta uma ou outra música com dificuldade, jogando para o público o refrão. Ainda assim, sua entrega ao longo de 22 músicas confirma o sentimento de virada que estabeleceram no rock latino-americano. Contundentes e vigorosos, não se utilizaram de pirotecnia ou de roupas muito elegantes. Entregaram a sensibilidade dos discos mais recentes e reacenderam a chama punk que os constituiu. Um show que soava, a priori, parado, contou até mesmo com um ritmado "bate-cabeça" no centro da plateia, que se fez gigante na potente "Chica Rutera".


Poster oficial do show de São Paulo. FONTE: Hits Perdidos


El camino de El Mató se hace al andar. Seu som já percorreu o mundo algumas vezes, como nesta última em que vieram ao Brasil, reafirmando que um mercado independente contém um valor de liberdade inalienável e que a coletividade com outras bandas no início do século, logo após o trágico Cromañón, foi o primeiro passo de uma trajetória autêntica e rebelde. E então, qual será o seu próximo movimento, El Mató?


[1] Indie: Gênero de rock que pode ser chamado também de Rock Independente, surgiu nos EUA e na Inglaterra por volta dos anos 1980. No início seu nicho dizia respeito àquelas bandas que não gravavam em grandes selos, depois adquiriu identidade musical própria, que fugia da estética recorrente do rock.

[2] Punk: Surgiu nos anos 1970 com a proposta de realizar harmonias simples, de ritmo rápido e timbre pesado. As letras tratavam de guerra, drogas, desemprego, entre outras demandas de grupos anarquistas e niilistas.

[3] Rock Chabón: Gênero de rock caracterizado por influências dos anos 1980 e 1990 vindas dos EUA e Inglaterra de bandas como Sonic Youth e Ramones; mescla influências do indie com o punk rock.


Fontes das imagens:


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