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Renato Murad

“O retorno”: identidades e nacionalidades


“Estavam lá retornados de todos os cantos do império, o império estava ali, naquela sala, um império cansado, a precisar de casa e de comida, um império derrotado e humilhado, um império de que ninguém queria saber.”


O trecho acima corresponde à fala do personagem Rui, o adolescente que protagoniza o romance “O Retorno” de Dulce Maria Cardoso, autora portuguesa nascida em 1964 e representante de uma nova geração de escritores do país. Adjetivos como “cansado”, “derrotado” e “humilhado”, geralmente usados para definir a miséria de países colonizados como Brasil e Angola, são ressignificados dentro do romance para apresentar um Portugal bastante diferente daquele que imaginamos.


Para entender a frase da autora é preciso contexto. Entre 1926 e 1974, Portugal viveu uma ditadura de caráter extremamente autoritário e repressivo que ficou conhecida como Estado Novo. Com inspirações fascistas e uma participação determinante da Igreja Católica, o governo contava com um departamento de controle ideológico, bem como a PIDE (Polícia Internacional e Defesa de Estado), responsável pela morte, prisão e exílio daqueles que se opunham ao regime. O líder que ficou pelo maior tempo no poder foi António de Oliveira Salazar, defensor de uma política colonialista e provocador de conflitos na então África portuguesa (essencialmente Cabo Verde, Moçambique e Angola).


Após a morte de Salazar o Estado Novo enfraqueceu e abriu uma brecha para a Revolução dos Cravos, um movimento político e militar de esquerda que foi capaz de restabelecer, nos anos seguintes, a liberdade e a democracia em Portugal. Uma das primeiras decisões tomadas pelo governo revolucionário foi a revogação da condição de colônia para os países da África portuguesa e o fim da “Guerra colonial”. Essa mudança abrupta deixou fortes marcas nos habitantes tanto da África quanto da Europa. Portugueses residentes em Angola, por exemplo, se viram obrigados a voltar para Portugal por uma questão ideológica. Como manter os antigos colonos brancos em uma Angola renovada e independente?


Dessa forma, uma massa de pessoas, os chamados “retornados”, migraram de volta para sua pátria, muito alterada pelos anos de transição da ditadura fascista para um novo governo socialista. É desse país que Dulce Maria Cardoso fala. O protagonista é filho de pais portugueses, mas nascido em solo angolano. “O Retorno” é um romance que pode ser analisado como um complexo apanhado dessas identidades. Para os que ficam em Angola, Rui é o colonizador, o vilão que saqueou a África por centenas de anos. Contudo, para os portugueses, Rui é um africano, um “filho bastardo” daquela terra, um “meio-irmão”. A condição desse personagem se assemelha aos milhares que voltaram à sua pátria sem quase se lembrar do rosto dos pais ou das ruas de sua cidade. Muitos portugueses saíram ainda novos de Portugal em busca de melhores condições de vida nas colônias africanas e, quando voltaram, não tinham condições nem financeiras, nem afetivas, de se estabelecer na Metrópole.


O antropólogo Stuart Hall pode contribuir a esta discussão no que tange às complexidades de nacionalidades e identidades. Ele afirma: “as identidades nacionais não são coisas com as quais nós nascemos, mas são formadas e transformadas no interior da representação”. Tal afirmação nos leva a crer que Rui, apesar de ter nascido em solo angolano, se sentia português por conta de sua herança cultural e familiar.


A leitura de “O Retorno” não é recomendável apenas por ser um clássico da literatura contemporânea portuguesa ou por apresentar uma realidade histórica bastante apurada. O livro é pra ser devorado! Desde as descrições cuidadosas de Luanda, às palhaçadas da juventude do protagonista, até seus amores e temores. O uso de um tempo psicológico contribui para a impressão de um constante esquecimento. Portugal aparece absolutamente distante na visão de Rui, que o enxerga quase como um paraíso na Terra, uma exaltação nacional que beira àquilo que pensava Luís Vaz de Camões, grande poeta lusófono, quando escreveu o épico “Os Lusíadas” para edificar a identidade “desbravadora” e “viril” dos portugueses.


Apesar de escrever no plano da ficção, Dulce Maria Cardoso é capaz de captar no romance o descontentamento de retornar a um lugar donde nunca se pertenceu. Histórias e territórios entrelaçados, unidos pela exploração de séculos e uma população suspensa entre as identidades de Metrópole e Colônia. Quando alguém se desloca de sua terra natal na direção de uma vida melhor encontramos justificativas enraizadas na historicidade da migração. Nesse caso, “O Retorno” é a narrativa de duas migrações: o sair de casa e o voltar pra casa, mesmo que esta apareça desbotada numa foto e já contemple a memória.


Referências Bibliográficas:

CARDOSO, Dulce Maria. O Retorno. Editora Planeta: Lisboa, 2011, p.86.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. DP&A editora: Rio de Janeiro, 2005, p. 48.




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