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Laura Lopes

O samba transforma: abraça a tristeza e irradia a esperança



O samba é – e sempre foi – mais que um mero gênero musical. Nascido há mais de um século em rodas de batuque nos confins da Bahia e do Rio de Janeiro, passou rapidamente de uma prática descompromissada a uma celebração quase ritualística que reunia membros de comunidades afro-brasileiras recém-libertas da escravidão.Na época, essas pessoas iniciavam suas tentativas de buscar não só a ocupação de espaços no mercado de trabalho, mas também a sensação de pertencimento em meio a uma sociedade composta por pessoas que sempre foram livres e simpatizantes da ideia de controle da liberdade do outro.


Além da árdua atividade de criar um encaixe entre suas próprias comunidades e a sociedade branca brasileira, havia também o entrave da desmoralização generalizada das religiões afro. Sobretudo do Candomblé, que continha batuques feitos por instrumentos específicos que, mais tarde, foram incorporados no samba: o pandeiro, a cuíca e os atabaques. Primordialmente, samba de roda, hoje se desdobra em diversos sub-gêneros, sendo os mais comuns samba de breque, samba-enredo, samba-exaltação, partido alto, pagode e até mesmo a bossa nova.


Apesar da eventual popularização do samba nas camadas da classe média em meados da década de 30, possibilitada pela difusão das canções através do rádio – principal meio de comunicação da época –, que trouxe para as casas brasileiras, por exemplo, a música de Noel Rosa, sambista carioca precursor do diálogo entre as questões sociais dos moradores do morro e o restante do mundo que nunca experimentara tal realidade em nenhum grau. O coração do samba nunca deixou de manter estreitos laços com um povo que encontrava nas cantorias e batucadas uma forma de canalizar todo o sofrimento, para afastar, de forma bem humorada, as mazelas da vida cotidiana.


Com isso, é nítido que ainda nos dias de hoje o samba cumpre um importante papel não somente no universo da música brasileira e no principal evento do país – o carnaval –, mas também e, especialmente, no emocional dos indivíduos.


“Batuque é um privilégio

Ninguém aprende samba no colégio

Sambar é chorar de alegria

É sorrir de nostalgia

Dentro da melodia

Por isso agora lá na Penha

Vou mandar minha morena

Pra cantar com satisfação

E com harmonia

Esta triste melodia

Que é meu samba em feitio de oração

O samba na realidade não vem do morro

Nem lá da cidade

E quem suportar uma paixão

Sentirá que o samba então

Nasce do coração”


– Feitio de Oração, por Noel Rosa


É fato que a existência humana é toda baseada nas trocas realizadas entre os indivíduos e, em termos sociais, que o coletivo possui um constante impacto no âmago (íntimo) de cada um. Por esta razão se dá o simbolismo criado ao redor do samba, nesse contexto de perseverança e reinvenção de grupos marginalizados em um país como o Brasil que, há um século atrás, passava por muitas mudanças socioeconômicas e políticas.


Tendo em vista suas raízes na resistência e também a relação entre impacto coletivo na subjetividade[1] do sujeito, é natural que ocorra a internalização por parte dos sambistas de suas próprias angústias, ressentimentos e desejos na composição das canções.


A magia do samba, porém, se encontra na maneira de trazer tantos sentimentos: além das letras acessíveis – de linguagem simples, que se comunicam com toda a gente –, a melodia e a forma de expressar o que se pretende dizer (ou desabafar) são sempre muito bem humoradas, contagiadas por uma alegria que vem espontânea do peito. O batuque é enérgico, incansável e contínuo. Convida o corpo a se movimentar, a espantar os males através da dança. A conversão das mágoas em folia é quase que inevitável, arrisco dizer que traz a sensação de anestesia. Não elimina as aflições da gente para sempre, mas nos relembra da graça de viver.


O samba remete a outros elementos que por si só já representam momentos de felicidade e descontração: se faz e se ouve em dias de sol ou noites de farra, nas rodas de amigos e com copos gelados de cerveja. O riso fácil, a cantoria ébria e animada e as mensagens de persistência e incentivo a uma “volta por cima” acabam por alimentar e fortalecer a esperança que o povo precisa para seguir os dias e aliviar o peso da vida. Afinal, nada errado em sambar até o amanhecer de vez em quando.


[...]

O samba-canção e o samba rasgado

e o samba quadrado

[...]

Um sambinha lento e um partido alto”

– Canta, Canta, Minha Gente - Martinho da Vila


Essa reflexão nasceu quando pude sentir na pele a força de vitalidade que o samba tem em cada nota. Coloquei pra tocar minhas favoritas da Beth Carvalho – a rainha do samba, grande presença feminina do gênero – , num dia ensolarado que me apareceu em um tempo de muita tristeza. Quando me dei conta, havia me esquecido do que me perturbava e me vi totalmente hipnotizada pela voz de Beth, que chegava até mim junto com os raios solares. Foi quando, de fato, sacudi a poeira acumulada há um tempo.


Então, compreendi que o samba existe justamente para isso: para dissipar a tristeza, iluminar nossos cantos que por vezes são tomados por sombras. E esse poder recai sobre diferentes âmbitos: alivia desde as mais banais dores do coração até as feridas mais profundas, que se negam a cicatrizar; fortalece nossas batalhas pessoais e também as lutas de povos inteiros, por mais que as marcas e as vivências possuam certas diferenças.



“Eu canto samba

Por que só assim eu me sinto contente

Eu vou ao samba

Porque longe dele eu não posso viver

Com ele eu tenho de fato uma velha intimidade

Se fico sozinho ele vem me socorrer

Há muito tempo eu escuto esse papo furado

Dizendo que o samba acabou

Só se foi quando o dia clareou

O samba é alegria

Falando coisas da gente

Se você anda tristonho

No samba fica contente

Segure o choro criança

Vou te fazer um carinho

Levando um samba de leve

Nas cordas do meu cavaquinho”


– Eu Canto Samba- Paulinho da Viola



“O meu samba vai além

É a minha bandeira, paixão verdadeira

Que me satisfaz

Essa luz tão divina ilumina os nossos quintais

É um dom envolvente presente na gente

Nascente da paz”


– Nascente da paz- Grupo Fundo de Quintal


O samba, dentre tantos gêneros musicais repletos de particularidades que foram surgindo durante o caminhar da humanidade pela Terra, é a riqueza brasileira. A nossa criação mais bonita, reflexo das angústias e vontades de um mesmo povo, tão distinto, mas que canta e dança em uma só voz quando senta em roda para batucar e bebericar uma cerveja trincando no calor, aproveitando as tréguas que de vez em quando a vida dá.


Encerro essa breve análise sobre o caráter emocional do samba com sugestões de boas canções que trazem o mais genuíno lembrete de exaltação à alegria:


  • Vai Passar- Chico Buarque

  • Ela desatinou - Chico Buarque

  • É Preciso Cantar - Os Originais do Samba

  • Tristeza Pé no Chão- Clara Nunes

  • Roendo as Unhas- Paulinho da Viola

  • Eu Quero um Samba- Demônios da Garoa

  • O Samba da Minha Terra- Dorival Caymmi

  • Sinfonia Imortal- Nelson Sargento

  • Feira de Mangaio - Clara Nunes

  • Divina é a Música - Beth Carvalho


[1]Subjetividade é, em termos mais simples e resumidos, a forma que cada indivíduo desenvolve de absorver e interpretar os eventos da vida, de acordo com suas próprias características psicológicas e emocionais e suas vivências.


Referências Bibliográficas:

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