por trás da fantasia criada por Jordan Peele e Henry Selick
No último mês de outubro – que tradicionalmente reserva a atenção das plataformas de streaming para filmes com temáticas de Halloween[1] – foi entregue pela Netflix o longa-metragem “Wendell & Wild” (2022), mais novo lançamento de Henry Selick, um dos principais cineastas do stop-motion[2] hollywoodiano.
O título se dá pelos nomes de um par de demônios irmãos, Wendell e Wild, que planejam a fuga de uma sentença dada por seu pai, o demônio soberano Búfalo Belzer, que tem problemas de calvície e os faz de serviçais para realizar implantes de cabelo com um creme especial. Basta este fato para demonstrar o caráter humorístico e excêntrico que assume a proposta de um horror próprio para um público mais jovem. O diretor comentou que resgatou a ideia da dupla de uma lembrança de um dia ter associado seus filhos, que brincavam, com dois pequenos demônios travessos.
Apesar da atmosfera nebulosa, a estética do filme traz cores de destaque ao submundo em que se situam os demônios e a apresentação visual da real protagonista, Kat Elliot, que adota um estilo punk-rock[3]. Kat é uma adolescente rebelde, que guarda muita culpa dentro de si pelo acidente que causou o afogamento de seus pais quando era mais nova.
A ausência de amparo durante o resto de sua infância e pré-adolescência fez com que a garota crescesse com uma grande carga negativa de incompreensão, insegurança e raiva. Após cometer alguns delitos e ser tratada como uma criminosa, Kat recebe a oportunidade única de se reabilitar em uma escola católica “para meninas” em Rust Bank, a mesma cidade em que morava com seus pais.
O desenvolvimento emocional da protagonista é um dos pontos altos do enredo, tratando de maneira saudável o acolhimento e o processo necessários para libertar-se dos sentimentos ruins, recuperar a confiança e criar força, e, com isso, adaptar-se ao mundo e alcançar a possibilidade de conexão com os outros.
Na escola, Kat encontra diversos personagens relevantes para a trama, como Bests, um padre corrompido pela ganância, a irmã Helley (que, mais tarde, lhe revela um segredo), Siobhan, filha do casal Klaxon e donos de uma corporação que busca construir um presídio em Rust Bank. E por fim, Raúl, um garoto trans com quem ela faz amizade ao longo da história mesmo com suas dificuldades em estabelecer laços de afeto.
A riqueza dos detalhes de “Wendell & Wild” (2022) se inicia na sensibilidade dos complexos sentimentos que angustiam uma menina tão jovem e cresce na representatividade. Além de apresentar uma maioria de personagens não-brancos, com uma protagonista negra e coadjuvantes de diversas etnias, o filme lida com a transexualidade de Raúl de maneira muito natural, sem intenção de trazer foco à questão. Raúl é artista e busca uma maneira de solucionar um mal entendido que acometeu a cidade de Rust Bank – dentre tantas características perceptíveis, ser transexual é apenas mais uma delas.
Embora por vezes o enredo cometa deslizes em articular temas tão amplos – na perspectiva de pessoas adultas –, tem clareza em apontar os defeitos de alguns dos modos de conduzir a sociedade. O filme adota uma postura antipunitivista[4], demonstra a ineficácia do encarceramento de sujeitos jovens, em contraste com as respostas a uma iniciativa de reabilitação e ressocialização acompanhada da análise do contexto que enraíza as tendências ao que é concebido pelo sistema como mau comportamento, transgressão e criminalidade (e a quem se geralmente endereçam tais características).
O olhar crítico a esta problemática se dá pela co-produção de Jordan Peele, cineasta estadunidense reconhecido por obras cinematográficas com roteiros que atravessam as estruturas racistas e desiguais dos Estados Unidos através do terror, ocasionalmente interceptado por elementos cômicos (inversamente proporcional ao longa “Wendell & Wild” (2022).
É preferível evitar o hábito de traçar formas de comparação entre este filme e “Coraline” (2009), a última obra de Selick, para legitimar as particularidades tão pertinentes por trás dos personagens e da trama de “Wendell & Wild” (2022), e apreciar o stop-motion em formato mais purificado que foge da computação gráfica e não peca no excesso de efeitos especiais.
A produção começou durante a pandemia da Covid-19, em um período de crise não só sanitária mas também sociopolítica. No entanto, a equipe preservou o comprometimento com a continuidade e também com a originalidade do stop-motion que queriam construir. Foi propositalmente descartada a edição completa, que esconde linhas que demarcam as partes do rosto dos personagens, trocadas de acordo com suas falas e expressões, e encurtado o número de “takes” por segundo, para dar mais luz e realismo aos bonecos e seus movimentos.
Mesmo com as inevitáveis críticas (em termos de gente grande, entendida de audiovisual) a esse método e aos espaços que eventualmente aparecem entre os temas discutidos no filme, ele é, mais uma vez, fundamental. Maravilhoso para compartilhar com as crianças e os jovens em formação, a naturalização de algumas questões que a maioria dos adultos não pôde ver no cinema ao crescer. Ótimo para tornar comum a diversidade étnica na maior parte do elenco do filme. Bom para questionar quem é colocado na posição de delinquente e animalesco e a quem interessa essa dinâmica – os indivíduos versus as corporações. Inesquecível para quem busca um mundo que dialoga o fantástico com a realidade.
[1] Halloween é o nome dado ao dia das bruxas, data que marca a cultura estadunidense e que acabou por produzir todo um universo temático que traz a discussão de diversos assuntos através de um caminho inesperado, o horror.
[2] stop-motion é uma técnica de se fazer cinema de animação que une milhares de fotografias de um mesmo objeto posicionado de maneiras diferentes, e produz movimento. Os bonecos animados mais simples geralmente são feitos de massa de modelar, mas podem ser confeccionados com qualquer tipo de material.
[3] punk-rock é um movimento musical e cultural que incorporou questões sociopolíticas e revolucionárias a músicas de melodia agressiva e agitada, que expressam descontentamento e revolta. Na vestimenta que compõe a identidade punk-rock, as roupas buscam o chocante e o destaque com correntes, piercings, spikes, cintos, saltos de plataforma e tons escuros.
[4] em oposição ao punitivismo, o antipunitivismo procura reverter um sistema que considera o encarceramento e confinamento em condições insalubres como uma solução para problemas ligados à criminalidade e violência, anulando métodos de ressocialização ou qualquer atenção voltada aos contextos sociopolíticos que envolvem os sujeitos criminosos; entende que as prisões são arbitrárias e obsoletas.
Referências bibliográficas
HUTCHINSON, Chase. From 'Get Out' to 'Nope,' Jordan Peele's Distinct Iconography Is a Visual Feast All His Own. Collider.com, 2022. https://collider.com/nope-get-out-jordan-peele-distinct-iconography-visual-feast/
CAMPBELL, Kambole .Scheming Demons: behind the scenes of Wendell & Wild with stop-motion master Henry Selick. Letterboxd.com, 2022. https://letterboxd.com/journal/scheming-demons-henry-selick-wendell-and-wild/
GEEKY, Mama’s. Director Henry Selick Talks Stop Motion Animation Evolution | Wendell & Wild Interview. Youtube.com, 2022. https://www.youtube.com/watch?v=s5_vvXkREL4
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