Para discutir o contato do público com a arte, é inevitável a infeliz menção aos efeitos da pandemia: a impossibilidade de reunir várias pessoas em um mesmo espaço podou o acesso e o aproveitamento da arte como conhecíamos. De certa forma, as experiências com arte, durante esse período difícil, foram, para dizer o mínimo, enxutas. Os filmes, por exemplo, deixaram de ser assistidos na tela do cinema e passaram a ser consumidos em serviços de “streaming” – plataformas que, sob assinatura e mensalidade, disponibilizam catálogos de filmes específicos.
A música, por sua vez, deixou de ser ouvida e experienciada em concertos, orquestras e shows e resistiu também por meio de plataformas e até mesmo pelo saudosismo dos discos de vinil ou dos CDs. A internet, então, se encarregou de centralizar e reproduzir todo tipo de arte imaginável. Na falta de exposições em museus e exibições de rua, tudo passou a ser postado, arquivado e compartilhado pelas redes.
Assim como os shows, as sessões de cinema e as exposições de obras de arte, as peças de teatro também foram suspensas. Tornou-se distante a sensação de experienciar a brevidade dos momentos que nos relembram da realidade como ela é: com olhos e ouvidos no palco, não era possível pausar, rever ou pular sequer um segundo das performances que lá aconteciam. O decorrer do espetáculo acontecia de acordo com as circunstâncias naturais da vida, de forma paradoxalmente crua (sem efeitos especiais ou interferência de recursos digitais) e complexa (fadadas ao momento, as encenações eram feitas da forma que conseguiam ser, sob o risco de qualquer imprevisto e inviabilidade de serem refeitas ou reformuladas, pautadas e construídas no corpo e nos meios dos agentes realizadores: os atores e atrizes).
Os atores funcionam, nesse meio, como o canal de transmissão da mágica teatral aos espectadores, criadores de uma inevitável intimidade entre todos presentes nos palcos e platéias. Dentre os muitos atores fundamentais na trajetória do teatro brasileiro, temos a mulher que abriu caminho para a identidade feminina em meio à predominância masculina: Cacilda Becker.
A atriz paulista nasceu no ano de 1921 em Pirassununga, cidade do interior. Apesar de ter vivido pouco, colecionou inúmeras experiências que nem sempre estiveram encaminhadas à vida dos palcos de teatro que foram aos poucos sendo incorporadas em suas performances. Os fatos ocorridos em sua curta vida, que durou apenas 48 anos, remetem à brevidade que se assemelha ao ato de assistir a uma peça de teatro: bonita, marcante e única.
A atriz conquistou o “nome próprio” e o renome a ele associado. A relevância disso se dá pela análise de que o nome constrói a persona que passa a produzir, obter e desfrutar do prestígio que possibilita a notoriedade e talvez até mesmo a imortalidade no meio artístico simbólico. Suas performances assumiram importante influência na independência feminina no mundo teatral que se formava no Brasil em meados de 1940, isto é, abriram a possibilidade para a construção de carreiras que poderiam transcender as sombras de personalidades masculinas.
Cacilda se eternizou na dramaturgia brasileira e, especialmente, na aquisição da autoridade feminina pelo mérito próprio – o que refletiu em muitas outras atrizes posteriores que se aventuraram em mais um dos âmbitos dominados por homens - e foi a primeira atriz profissional de teatro nos palcos brasileiros, contratada pela companhia Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). Encenou quase 70 peças. Dentre seus trabalhos mais notáveis estão “O Auto da Barca do Inferno”, de Gil Vicente (1943); “Mulher do Próximo”, de Abílio Pereira de Almeida (1948); “Dama das Camélias”, de Alexandre Dumas (1951); “Maria Stuart”, de Friedrich Schiller (1955) e “Quem Tem Medo de Virgínia Woolf”, de Edward Albee, (1965). No cinema, Cacilda atuou em “Luz dos meus Olhos”, (1947); “Floradas da Serra”, (1954); e “Ciúmes”, (1966).
Foi dignificada por suas performances ímpares e excêntricas e, com isso, agregou um valor simbólico notável às suas interpretações e se distinguiu, voltando, assim, os olhares ao potencial feminino. Outra constatação imprescindível de seu legado é a contribuição para a ampliação do espaço e do significado do teatro brasileiro, que proporcionou através de seus próprios gestos e entonações.
O teatro brasileiro, às vésperas da presença de Cacilda, era marginalizado, esvaziado de renome ou recursos. As atrizes, equiparadas às mulheres à toa da vida, prostitutas. Os meios caóticos e fragmentados de organizar as peças chamaram a atenção de sua sensibilidade artística e subversiva, visto que os atores compareciam aos ensaios cientes apenas de suas próprias falas, sem ter o conhecimento do que receberiam como resposta e tampouco de como seriam concebidas e realizadas as relações com os parceiros de cena.
Cacilda gozava de uma excepcionalidade memorável, pois parecia se desprender de sua casca de diversas formas a cada personagem que interpretava. Embora não apresentasse domínio de técnicas acadêmicas (ou qualquer formação além da experiência prática), era capaz de apresentar olhares e detalhes distintos, apesar de seu âmago e sua individualidade estarem sempre presentes – Cacilda mesmo constatou que percebia sua essência intercalada em cada uma de suas performances, conforme o teatro fora adquirindo interesse pelo desenvolvimento psicológico e íntimo de seus personagens.
Dito isso, é pertinente observar certas características do teatro que podem ser entendidas, inclusive, como privilégios, particularidades. O corpo (como principal agente e canal na performance) posto no ambiente teatral que dispensa efeitos e, portanto, escanteia compromissos com o ultrarrealismo, acaba por ser exposto em seus formatos mais honestos: está sempre sujeito a revelar as marcas do tempo (de envelhecimento) e qualquer característica desalinhada com os padrões de beleza que vigoram na arte desde seus primórdios, nas esculturas pré-históricas e pinturas renascentistas.
Isso pode, a princípio, soar desvantajoso, porém, o ator de teatro abraça suas próprias falhas e, por meio delas, reinventa e ressignifica. É possível se desprender de conceitos que exijam o que é fidedigno. Ou seja, muitas vezes o sentido de suas performances está justamente nos defeitos, a graça do personagem se encontra no papel que um ator mais velho assume de um personagem jovem, ou vice-versa. Sendo assim, cria-se, no teatro, um ambiente de ampliação das técnicas de performance que ultrapassam os critérios do realismo, da verossimilhança.
Cacilda Becker, aos olhos imediatistas, não era vista como um símbolo da beleza que se espera de uma atriz “famosa”. Contudo, eram tão refinadas as suas metamorfoses no palco, que certos julgamentos perderam força e enfoque.
Esse fenômeno aconteceu como um feitiço em meio aos críticos de teatro, que engataram em uma espécie de obsessão por sua imponência, é chamado de a burla do gênero. Pessoalmente, compreendo que o sentido do termo não diz respeito apenas ao gênero feminino – que relata a ascensão da autonomia da mulher no teatro e a própria percepção de Cacilda como tal, mas também faz jus a esse conjunto de expectativas veladas que foram por ela, mais uma vez, transcendidas.
Portanto, a burla consiste no acordo silencioso feito entre os intérpretes e o público que provoca um espaço de maior liberdade para que os atores tenham o papel de construir em cena seus próprios personagens, compostos por suas próprias falhas individuais e podem até mesmo atravessar e potencializar as próprias emoções que tomam lugar em seus interiores no momento da encenação.
Frente à censura que limitava manifestações artísticas de qualquer natureza durante a Ditadura Militar, Cacilda Becker nunca hesitou em se posicionar contra e lutar pela libertação do meio artístico, principalmente nos palcos.
Cacilda é, até hoje, tida como uma lenda, um mito, uma vez que, mesmo com praticamente nenhum acesso às suas performances nos palcos – que não eram gravadas – , é consolidado e constantemente reafirmado seu talento, associado com adjetivos que beiram a agressividade como “monstruoso” e “desproporcional”, tamanha era a perplexidade daqueles que tiveram a chance de vê-la se apresentar. A influência de sua personalidade como um todo abriu caminhos para que as mulheres repensassem seus lugares no espaço artístico, bem como contribuiu (mesmo que indiretamente) para a adaptação dos propósitos elaborados pelos diretores e roteiristas frente aos ares da mudança de enfoque e aprofundamento das dimensões emocionais humanas no enredo.
Referências Bibliográficas:
Editores da Enciclopédia Itaú Cultural, “Cacilda Becker”, Enciclopédia Itaú Cultural, São Paulo, 2021. https://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa349429/cacilda-becker
PONTES, Heloisa, “A burla do gênero: Cacilda Becker, a Mary Stuart de Pirassununga”, Tempo Social, vol. 16, n° 1, 2004, pp. 232-262.
CARNIELI, Luciana, “Cacilda Becker e sua importância no teatro brasileiro”, Oficinas Culturais do Estado de São Paulo, Youtube, 2020. https://www.youtube.com/watch?v=GXBGipT13jk
Comments