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Giulia Grecco Spada

Quem conta um conto aumenta um ponto? Reflexões sobre o conhecimento oral na África

“Se queres saber quem sou,

Se queres que te ensine o que sei,

Deixa um pouco de ser o que tu és

E esquece o que sabes”

Tierno Bokar, sábio de Bandiagara[1]


Um grande intelectual possui sua estante transbordando de livros e está constantemente com o rosto escondido atrás deles. Um acadêmico só alcança o sucesso se tem seus trabalhos publicados. Um historiador tradicional busca suas fontes em arquivos lotados de registros. Um antropólogo traduz o modo de vida de um povo para seus livros, conferindo-lhes legitimidade. Um advogado se utiliza de códigos escritos. Uma pessoa só é proprietária de sua casa se uma escritura comprova a posse. Um cientista em formação passa grande parte do tempo dentro de bibliotecas, mergulhado em teorias.

Todos esses aspectos da sociedade, que parecem tão naturais, escondem uma concepção que coloca a escrita como modo único de registro fidedigno: um texto é a inscrição eterna de uma história, de um raciocínio, de uma ideia, de uma informação, que percorreu apenas o caminho entre o pensamento e as mãos de seu autor, aparentemente blindado de qualquer influência externa posterior a ele, sendo a única fonte confiável de conhecimento. Em um nível inferior, o conhecimento oral – não escrito –, passado de pessoa para pessoa através da palavra, é tido como passível de erros, mentiras, desinformação e sujeito a todos os tipos de percalços que alterariam o fato ou informação, tirando-lhe sua confiabilidade. Seria irresistível para um narrador não alterar sua história – sempre há uma maneira de deixá-la mais favorável ou mais interessante, seja realmente mudando elementos, seja apenas omitindo-os. Já dizia o provérbio: “quem conta um conto aumenta um ponto”.

Será que isso é válido? Será mesmo que todas as sociedades seguem a mesma lógica? Ou será que essa é uma ideia construída por uma determinada sociedade e está em voga há tanto tempo que nos parece natural?

Um primeiro passo para responder a esse questionamento é olhar para sociedades com lógicas diferentes, nas quais o conhecimento é passado através da oralidade, entendendo como elas funcionam – em vez de apenas desqualificá-las como “primitivas” ou “inferiores” por não terem sistemas de escrita. A história dos povos africanos é um território de pesquisa muito fértil para tal, bem como a dos povos tradicionais do nosso próprio país, que ainda conservam seu modo de transmissão pela palavra. Aqui, trataremos do primeiro deles, mais especificamente das tradições africanas da savana ao sul do Saara estudadas pelo africano e africanista[2] A. Hampâté Bâ[3].


Músico tukulor, extraída de “A tradição viva”


E é justamente a palavra o nosso ponto de partida: nessas culturas, ela está envolta por uma aura sagrada, possui um significado essencial presente desde a criação do mundo até no aprendizado dos ofícios gerais praticados na comunidade. Mais que conhecimento, a palavra é movimento, ritmo, vida. No mito de criação da tradição Komo da região do Mali, por exemplo, a palavra emana de Deus, Maa Ngala, que cria o Primeiro Homem, Maa, pois sente falta de um interlocutor. Concede-lhe, então, o poder divino da fala e o torna guardião do Universo e responsável pela conservação da Harmonia universal – a palavra, portanto, vem como dom e como compromisso. Em todas as tradições africanas, no geral, a palavra é um meio de manter a harmonia do universo através do contato entre o mundo visível e o invisível – ambos vivos e em movimento, onde tudo se liga, é solidário e regulamentado ritualmente.

Logo, o conhecimento oral também é precisamente regulamentado e a mentira ritualmente interditada, uma “lepra moral”, segundo Hampâté Bâ. Quem mente mata sua pessoa civil. Há posições específicas na sociedade que ditam o que pode ou não ser feito ao se contar uma história: os "tradicionalistas" – responsáveis pela herança oral, chamados de Doma – têm um compromisso moral ao se tornarem um elo da cadeia de transmissão do conhecimento, na qual a palavra é mágica, não apenas conversa ou contação de histórias. Não lhes é permitido alterar o que lhes foi passado um dia, devem sempre referir aos antepassados que os ensinaram e estão sujeitos, o tempo todo, ao controle dos anciãos, que podem corrigi-los. Os conhecedores não são pessoas quaisquer, o conhecimento que lhes cabe é fixado moralmente e envolto em rituais. A autenticidade é garantida pela própria estrutura social, há um autocontrole social permanente.

Para a casta dos griots “embaixadores”, por sua vez, não existe a disciplina da verdade, são animadores públicos que podem embelezar uma história, serem cínicos ou indiscretos sem sofrerem consequências, pois não guardam o compromisso sagrado do tradicionalista Doma. Já os griots genealogistas são grandes viajantes que guardam memória das gerações, suas histórias, proezas e gestos, sabendo de pelo menos 10 a 12 gerações – o que nos leva a refletir justamente sobre a capacidade de memória dos indivíduos das culturas orais, de qualidade gigantesca e admirável, que armazena todo o cenário, as personagens e os detalhes das histórias que zelam.

Griot Hutu, extraído de “A tradição viva”

Todo o conhecimento tradicional acerca dos ofícios, como a fundição, a tecelagem e a marcenaria também é passado de geração para geração através da oralidade. Diferente do trabalho categórico da sociedade ocidental, que compartimenta os fundamentos de cada profissão e gera a especialização de cada trabalhador, os ofícios tradicionais estão ligados à experiência e à vida, em uma relação menos utilitária e mais participativa com a totalidade do mundo. O ferreiro de alto-forno conhece a mineralogia, as plantas, a mata e os vegetais no geral – “conhece as espécies de vegetais que cobrem a terra que contém determinado metal”. O caçador conhece todas as “encantações da mata” e a ciência animal. Um conhecimento interdisciplinar, prático e mágico em sua essência, pois também equilibra os mundos visível e invisível, visto que tudo está interligado.

Sendo assim, nada prova, previamente, que a confiabilidade das informações escritas é maior do que as orais. Um exemplo histórico de como documentos escritos podem ser manipulados é a “Doação de Constantino”, uma declaração supostamente escrita por Constantino (imperador do Império Romano entre os anos de 306 a 337) na qual doa as terras do Império Romano à Igreja Romana; contudo, no século XV, foi provada sua falsidade. Por outro lado, em um de seus estudos, Hampaté Bâ comprovou a confiabilidade “científica” das histórias orais ao coletar relatos de mais de mil pessoas, por mais de 15 anos entre a Guiné e a Nigéria, retraçando as rotas que Sheikou Amadou e al-Hadjdj’Umar percorreram, a fim de compor seu livro História do Império Peul de Macina no Século XVIII. Comparando as narrativas a título de controle, observou que os relatos respeitavam a trama da história, alterando apenas detalhes pouco relevantes. “Os lugares, as batalhas, as vitórias e as derrotas, as conferências e diálogos mantidos, os propósitos dos personagens principais, etc.” foram todos mantidos.

A conclusão é que qualquer tipo de fonte de conhecimento deve ser criticada e uma não deve ser considerada naturalmente superior à outra. A ideia da escrita como única forma de acesso ao conhecimento é uma concepção construída pelo homem europeu a fim de reafirmar seu poder sobre outros povos, inferiorizando-os. Em um contexto de colonização, esse foi um dos mecanismos-chave para subalternizar outras populações, o que demonstra o poder da colonização para além do físico, sendo a inferiorização intelectual igualmente danosa.

As consequências são claras: ao desconsiderar o conhecimento oral, perde-se o conhecimento particular de diversas sociedades sem produção escrita e elas acabam excluídas do território do saber científico – inclusive porque esse saber não atende às suas necessidades, tendo categorias de análise exteriores e muito pouco funcionais para seu funcionamento particular enquanto sociedade. Os homens modernos se esforçaram para categorizar o mundo e, assim, fazer caber em suas categorias tudo que existe – e tudo o que não pôde ser categorizado em seus termos, de alguma forma, deixou de existir como forma de conhecimento.

Toda essa reflexão serve não apenas para questionarmos a primazia da escrita como forma de conhecimento e todos os outros pontos que isso levanta, como a interdisciplinaridade e a fragmentação do conhecimento, mas para pensarmos nossas categorias de pensamento como um todo enquanto uma construção social e não como coisas dadas, neutras, que se criaram por si. Como uma pesquisa científica sobre uma certa sociedade pode ser realizada se o principal meio de circulação de conhecimento dentro dela não é levado em consideração? Quais outros aspectos estão sendo deixados de fora pela metodologia científica? Por fim, qual o limite da ciência, sendo que foi criada por e para uma determinada sociedade?


[1] Citado no texto de Hampaté Bâ

[2] Intelectual cujos estudos são sobre o continente Africano

[3] A. Hampaté Bâ é do Mali, especialista em tradições orais; autor de várias obras sobre os antigos impérios africanos e a civilização africana (História Geral da África, vol I)


Referências bibliográficas:

A. Hampaté Bâ. A tradição viva. In: J. Ki-Zerbo. História Geral da África, volume 1 Metodologia e Pré-História da África. Brasília: UNESCO, 2ª. ed. 2010.


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