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Esther Martins de Carvalho Oliveira

Reflexões sobre um Brasil pós-pandemia da Covid-19

A pandemia da Covid-19 denota um período sombrio marcado por graves violações aos direitos humanos. No Brasil, país que apresenta índice superior a 600 mil óbitos confirmados [1], o governo Bolsonaro, em decorrência de suas ações e omissões intencionais, demonstra ser responsável direto por esse elevado número de mortes na população brasileira. Neste grave contexto de crise de saúde pública, podemos identificar o cometimento de crimes contra a humanidade [2] e do crime de genocídio [3] pelos órgãos governamentais.

Diante desse complexo cenário de cometimento de crimes internacionais, tipificados pelo Tribunal Penal Internacional (TPI), é importante reconhecermos a necessidade da instauração de um processo de Justiça de Transição no país, visando a concretização de respostas legais e efetivas para confrontar os crimes cometidos pelo atual governo, objetivando a construção de caminhos para a ratificação da democracia brasileira e para a transformação política, perante a identificação e o reconhecimento dos crimes e das atrocidades perpetuados pelos órgãos estatais.

Nestes termos, em primeiro plano, é preciso abordarmos o conceito de Justiça de Transição e seus pilares fundamentais. A referida justiça apresenta-se como um processo necessário, que se volta para os períodos de mudança política, comumente caracterizados pela implementação de medidas legais e institucionais para confrontar os crimes cometidos pelos regimes estatais repressivos que vigoraram anteriormente à sua instauração. Assim, a Justiça de Transição configura uma forma de lidar com as consequências e as sequelas das violações de direitos humanos e das atrocidades cometidas contra a população civil, objetivando, em plano nacional, a reconciliação entre o Estado e seus cidadãos, mediante transformação política e legitimação de um novo regime e de novas instituições, sob a perspectiva democrática.

Dentre os pilares da Justiça de Transição, o direito à justiça é central e diz respeito ao dever do Estado em investigar, processar e, eventualmente, punir os autores e responsáveis pelas violações dos direitos humanos. Desta forma, a Justiça de Transição em um cenário pós-pandêmico no Brasil exige a apuração correta dos fatos, sobretudo, das condutas criminosas assumidas pelos órgãos estatais, possibilitando o devido julgamento dos responsáveis pela perpetração desses crimes de maneira individual. É importante ressaltar que o processo penal exerce grande importância para o reconhecimento dos crimes cometidos e para a reconstrução da verdade material e da memória das vítimas.

O parecer elaborado para a Comissão Parlamentar de Inquérito Pandemia Covid-19 (CPI) traz análise das imputações penais cabíveis aos agentes responsáveis por ações e omissões no combate à pandemia: crime de responsabilidade, crimes contra a saúde pública, crimes contra a paz pública, crimes contra a administração pública e crimes contra a humanidade. No que se refere aos crimes contra a humanidade, o parecer aborda a questão da desassistência aos povos indígenas e do enfrentamento da pandemia em Manaus, concluindo, perante verificação de provas suficientes, que ambas as situações se enquadram na tipificação de crime contra a humanidade. Pontua-se, porém, que a desassistência aos povos indígenas, levando ao extermínio dessas populações tradicionais, poderia ser enquadrada como crime de genocídio, haja vista que essa desassistência consistiu em ampla política pública adotada abertamente pelo governo, perante a consciência de seus potenciais resultados lesivos.



Fonte:noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2021/10/07/parecer-a-cpi-acusa-governo-de-genocidio-contra-indigenas-na-pandemia.


Ademais, em recente pesquisa realizada pelo Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário – A linha do tempo da estratégia federal de disseminação da Covid-19 – foi identificado o cometimento de crimes contra a humanidade pelo governo, através da análise das estratégias implantadas para a disseminação da doença no país: como a defesa da tese da imunidade de rebanho; a defesa do “tratamento precoce” da Covid-19, mesmo diante da comprovação científica de sua ineficácia; a obstrução das medidas de contenção elaboradas pelos governos estaduais e municipais e a aquisição tardia e insuficiente de vacinas, causando a morte de milhares de pessoas, sobretudo, de populações vulneráveis. Sob perspectiva geral, o governo não desenvolveu políticas necessárias e recomendadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para a contenção e a prevenção da proliferação do vírus, negando a gravidade da doença, ante a defesa de ideias eugenistas [4] de que apenas pessoas com debilidades físicas morreriam.




Fonte: https://jornalistaslivres.org/nao-e-negacionismo-cientifico-e-pior/


Dito isso, frente à comprovação da violação de direitos humanos e de seu caráter generalizado e sistemático, caberá ao Estado, em contexto pós-pandêmico, através do poder judiciário, julgar os responsáveis pelos crimes, aplicando a legislação interna e a legislação internacional. Neste sentido, é importante sublinhar que processar, investigar e punir são obrigações de direito internacional do Estado e este não poderá se esquivar de seu dever, dando espaço para a impunidade dos agentes criminosos.

Além disso, ainda em relação aos processos judiciais, destaca-se que o direito à justiça das vítimas, familiares e de toda a sociedade somente será garantido diante do afastamento das imunidades [5] dos chefes de Estado, visto que entre os principais responsáveis pelos crimes no Brasil figuram diversos ministros e o próprio Presidente da República – principal responsável pelos crimes cometidos ao incentivar publicamente a aplicação da imunidade de rebanho. Ou seja, os chefes de Estado deverão ser julgados, independentemente de seus cargos.





Fonte: oglobo.com


Nesta esteira, o processo judicial se revela como um lugar de reconstrução da verdade e da memória, a partir do manejo das provas, dos relatos e das interpretações jurídicas sobre os fatos. A este ponto vincula-se a obrigação do Estado em revelar a verdade para as vítimas, seus familiares e toda a sociedade, dever que vai além da instauração de um processo, abrangendo também ações que possibilitem o estabelecimento da verdade sobre os fatos e os crimes cometidos. A garantia do direito à verdade é indispensável para o fim da impunidade dos responsáveis pelas violações de direitos humanos, pois a sociedade tem o direito de saber a extensão das causas e das maneiras de perpetração dos crimes.

As obrigações do Estado, no que diz respeito ao direito à verdade, além de serem importantes para o reconhecimento, por toda a sociedade, dos crimes cometidos e dos danos causados, são fundamentais para recordar a dor, as injustiças, as mortes e todo o sofrimento que permeia esse contexto de nossa história. A construção da memória é essencial para que tais fatos não se repitam futuramente e para que não haja posturas negacionistas em relação a sua ocorrência.

Diante deste cenário nefasto, objetivando a reparação, o Estado deverá reestabelecer o devido acesso à saúde, à educação, à moradia, às terras pelas comunidades tradicionais e a dignidade humana das vítimas, visto que através da edição de leis e decisões estatais, de omissões relativas à gestão da pandemia, de disposição de obstáculos para a efetiva atuação dos órgãos de saúde pública e das unidades de ensino, e de outras políticas marcadas pela desumanidade, o acesso a esses direitos fundamentais foi significativamente limitado. A crise sanitária foi utilizada como pretexto, pelo Governo Federal, para reafirmação de sua política neoliberal contrária à proteção social da população, negando a garantia de direitos básicos e fundamentais, como o próprio direito à vida.

O direito à reparação abrange a não repetição do ilícito, exigindo-se que todas as condições que viabilizaram as violações de direitos humanos sejam eliminadas. Desta forma, o Estado deverá afastar a impunidade, determinando a responsabilidade jurídica criminal, civil e administrativa dos agentes públicos e privados que perpetraram as violações. Como os crimes cometidos foram fortemente baseados em discursos negacionistas, é fundamental que o governo proponha reformas institucionais e legais que visem conceder maior ênfase e prestígio às pesquisas científicas, exigindo que políticas públicas, sobretudo na área da saúde, respeitem as determinações e orientações cientificamente comprovadas, sob pena de não poderem ser implementadas.

Por fim, visando as reformas institucionais, é obrigação do Estado afastar os criminosos dos órgãos estatais e de suas posições de autoridade nestas instituições, garantindo o direito da sociedade a instituições reorganizadas e mais democráticas. Deste modo, o Presidente da República, além de ser efetivamente julgado pela justiça interna e, possivelmente, pelo TPI, deverá ser afastado de seu cargo, tornando-se inelegível para qualquer função pública no poder executivo e legislativo, dada tamanha gravidade de suas condutas durante o período de pandemia. Tais medidas deverão ser executadas, também, em relação aos ministros do governo e demais autoridades.

O período de crise sanitária vivenciado pela sociedade brasileira é ainda marcado pela banalização dos crimes contra a humanidade cometidos e pelo menosprezo à extensão das consequências desses crimes: a expansão da pandemia e a morte de milhares de brasileiros. Sob véu do discurso neoliberal do avanço econômico, as políticas implementadas no campo da saúde pública, orientadas pelo negacionismo e pelo incentivo à contaminação massiva da população, representam plano expresso de assassinato em massa do povo brasileiro, atingindo de maneira mais intensa as populações vulneráveis. A pandemia no Brasil é caracterizada pelo governo da morte de Jair Bolsonaro.


Fonte: https://www12.senado.leg.br

Notas

[1] Segundo o site Coronavírus Brasil, até o dia 07 de maio de 2022, o país apresentava 664.126 óbitos decorrentes da pandemia de COVID-19 confirmados. Disponível em: https://covid.saude.gov.br/. Acesso em 08 de maio de 2022.

[2] Estatuto de Roma. Crimes contra a Humanidade. Para os efeitos do presente Estatuto, entende-se por "crime contra a humanidade", qualquer um dos atos seguintes, quando cometido no quadro de um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil, havendo conhecimento desse ataque: a) Homicídio; b) Extermínio; c) Escravidão; d) Deportação ou transferência forçada de uma população; e) Prisão ou outra forma de privação da liberdade física grave, em violação das normas fundamentais de direito internacional; f) Tortura; g) Agressão sexual, escravatura sexual, prostituição forçada, gravidez forçada, esterilização forçada ou qualquer outra forma de violência no campo sexual de gravidade comparável; h) Perseguição de um grupo ou coletividade que possa ser identificado, por motivos políticos, raciais, nacionais, étnicos, culturais, religiosos ou de gênero ou em função de outros critérios universalmente reconhecidos como inaceitáveis no direito internacional, relacionados com qualquer ato referido neste parágrafo ou com qualquer crime da competência do Tribunal; i) Desaparecimento forçado de pessoas; j) Crime de apartheid; k) Outros atos desumanos de caráter semelhante, que causem intencionalmente grande sofrimento, ou afetem gravemente a integridade física ou a saúde física ou mental.

[3] Estatuto de Roma. Crime de Genocídio. Para os efeitos do presente Estatuto, entende-se por "genocídio", qualquer um dos atos que a seguir se enumeram, praticado com intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, enquanto tal: a) Homicídio de membros do grupo; b) Ofensas graves à integridade física ou mental de membros do grupo; c) Sujeição intencional do grupo a condições de vida com vista a provocar a sua destruição física, total ou parcial; d) Imposição de medidas destinadas a impedir nascimentos no seio do grupo; e) Transferência, à força, de crianças do grupo para outro grupo.

[4] Eugenismo: ciência que estuda a melhoria das características genéticas da população humana. Porém, apesar da origem científica, as ideias eugenistas estão vinculadas ao racismo, perante a exclusão e eliminação arbitrária de indivíduos “indesejados” da sociedade.

[5] Imunidades: a imunidade concedida aos chefes de Estado significa que esses não poderão ser submetidos a julgamento civil, penal ou administrativo, devido a importância da função estatal que exercem, buscando afastar interferências nas atividades do Estado. As imunidades não são pessoais, mas em razão do cargo público exercido.


Referências bibliográficas

Mezarobba, G. 2009. De que se fala, quando se diz “Justiça de Transição”? BIB, n° 67, São Paulo

VENTURA, Deisy, AITH, Fernando, REIS, Rossana et al. “A linha do tempo da estratégia federal de disseminação da Covid-19”. São Paulo: CEPEDISA/USP, 2021. Disponível em: https://cepedisa.org.br/publicacoes/

Deisy de Freitas Lima Ventura, Cláudia Perrone-Moisés e Kathia Martin-Chenut. Pandemia e crimes contra a humanidade: o “caráter desumano” da gestão da catástrofe sanitária no Brasil. Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N. 3, 2021.

P. Rush, “Crímenes de ‘guerra sucia’: derecho penal internacional y jurisdicciones de la memoria”, Derecho del Estado n.º 32, Universidad Externado de Colombia, enero-junio de 2014

PERRONE-MOISÉS, Cláudia. Direito Internacional Penal: Imunidades e Anistias. São Paulo, Manole, 2012.


CATELA, Ludmila. Derechos humanos y memoria. Historia y dilemas de una relación particular en Argentina, p. 10. In: Teoria e Cultura. Revista do Mestrado em Ciências Sociais da UFJF, v. 3, n. 1 e 2, 2008.

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