“Isto é para quando você vier. É preciso estar preparado. Alguém terá que preveni-lo. Vai entrar numa terra em que a verdade e a mentira não têm mais os sentidos que o trouxeram até aqui. [...] A verdade está perdida entre todas as contradições e os disparates. [...]. As histórias dependem antes de tudo da confiança de quem as ouve, e da capacidade de interpretá-las (Nove Noites, página 7).”
Estas são as primeiras palavras do livro. Anunciam, sem que percebamos, o que virá a seguir: um livro em que a verdade é posta em xeque, em que o leitor não consegue diferenciar realidade e ficção e em que relato, conto jornalístico e até romance policial se mesclam.
Escrito por Bernardo Carvalho e publicado em 2002, o título é um dos destaques da literatura contemporânea brasileira, inclusive tendo sido considerado o melhor romance do ano pelo prêmio Machado de Assis e incluído na lista de livros obrigatórios da FUVEST[1] em 2021.
O fato que impulsiona a história é o misterioso e sangrento caso de suicídio do antropólogo Buell Quain, em 1939, enquanto vivia entre os indígenas Kraho, no interior do Brasil. Ele, depois de queimar todas suas roupas e escrever cartas aos seus conhecidos, retalha-se e enforca-se na frente dos dois indígenas que o acompanhavam na floresta. Bernardo Carvalho toma conhecimento da história através de um jornal e se torna obcecado. É aí que o livro toma forma, narrando a busca de um jornalista pela verdadeira história do antropólogo, misturando fragmentos de sua própria vida às peças da vida de Buell.
O livro é, portanto, uma metaficção historiográfica, pois toma um dado real – nesse caso, o suicídio de Buell – e o insere em uma narração ficcional, dedicada a explorar o próprio ato de escrever. Dois narradores alternam os 19 capítulos da obra: o jornalista, que é muito próximo da persona autor Bernardo Carvalho, e Manoel Perna, que fora amigo de Buell Quain e reflete, em uma escrita poética, acerca das nove noites em que esteve com ele. Dessa forma, “é uma biografia dupla, de alguém que não pode narrar porque já está morto e do narrador-jornalista que se autobiografa nesse processo e vai preenchendo os espaços com elementos eminentemente inventivos.”[2].
Uma das capas do livro mostra Bernardo Carvalho criança ao lado de um indígena do Xingu, ilustrando as viagens com seu pai ao interior do Mato Grosso e Goiás contadas pelo narrador-jornalista, o que deixa o leitor ainda mais instigado em saber o que de fato aconteceu e o que é fruto da ficção.
Além disso, um dos episódios da pesquisa do jornalista o leva à aldeia do povo com quem esteve Buell, na tentativa de entrar em contato com pessoas que o conheceram. O encontro e a estada na aldeia indígena são por ele narrados cruamente, não medindo palavras ao descrever o choque de culturas e, inclusive, os descrevendo como “órfãos da civilização”[3]. Os rituais o assustam, as relações de parentesco lhe são estranhas e até o momento do sono lhe é incômodo, pois ouve, ao mesmo tempo, choro de crianças e gemidos sexuais dentro da casa que compartilha com os indígenas.
Observa-se que, dessa forma, o narrador não apenas cumpre a missão de resgatar fragmentos da vida do antropólogo, mas também se aproxima da experiência que Buell teve como pesquisador, vivendo entre os nativos, sentindo repulsa de seus hábitos e se afeiçoando a eles. Vive o mesmo choque entre o “eu” e o “outro”, entre o “branco” e o “indígena”.
É assim que a verdade da história de Buell se mescla à verdade da história de Bernardo Carvalho na busca ficcional do jornalista. O leitor se vê envolto em um mistério junto aos narradores, que se assemelham a detetives, todos buscando a razão por trás do suicídio de Buell Quain. Porém, ao final, entendemos a impossibilidade do resgate da verdade, dado que a própria memória – e seu relato – são frutos de invenção, um resgate imaginativo do evento em si.
“A indistinção entre fato e ficção faz parte do suspense do romance. Por isso não vejo sentido em dizer o que é real e o que não é. [...] Há um dispositivo labiríntico, em que o leitor vai se perdendo ao longo da narração. Nesse caso isso fica mais nítido porque existem referências a pessoas reais. Mas mesmo as partes em que elas aparecem podem ter sido inventadas. Em última instância, tudo é ficção.” (Bernardo Carvalho)[4]
Por fim, deixo uma reflexão feita pelo autor em outra entrevista:
“Não tem como você fazer ciência sem imaginação, sem especulação. Você precisa supor coisas que não existem ainda, para poder inventá-la. [...] Você tem um pensamento projetivo, imaginativo, que é fundamental para a ciência e pro raciocínio científico.” (Bernardo Carvalho)[5].
[1] Fundação Universitária para o Vestibular; vestibular anual para entrada nos cursos de graduação da Universidade de São Paulo.
[2] Professor Emerson Cruz Inácio, FFLCH-USP (disponível em: https://jornal.usp.br/cultura/nove-noites-desconstroi-as-estrategias-da-narrativa-realista/).
[3] CARVALHO, Bernardo. Nove Noites. Companhia de Bolso; Edição de bolso, 2006, pág. 96.
[4] Bernardo Carvalho, em entrevista a Flávio Moura, 2003.
[5] Bernardo Carvalho, em entrevista ao Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais da PUC-SP, 2021.
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