Alguns nasceram
Para agitar a bandeira
Eles são vermelhos, brancos e azuis
E quando a banda toca Saudações ao Chefe
Eles apontam os canhões para você, Senhor
Esse não sou eu, esse não sou eu
Eu não sou filho de senador
Esse não sou eu, esse não sou eu
Eu não sou um afortunado não
Ao ouvir a música “Fortunate Son” (1969) do Creedence Crewater Revival podemos despertar uma série de imagens da cultura estadunidense, em especial relativas às primeiras décadas após o fim da Segunda Guerra Mundial. Carros cromados, brilhantina no cabelo, uma série de propagandas coloridas ilustrando as ruas e as televisões, a grandiosidade de uma emergente indústria cinematográfica e tudo isso com uma trilha sonora: Rock’n Roll. Na canção do Creedence, contudo, mais uma camada de sentido é acrescentada a esse repertório: a resistência.
A sonora vitória dos países chamados de Aliados, naquela Grande Guerra, dividiria o poder geopolítico de uma nova forma. Foi na Conferência de Bandung em 1955, realizada entre países da África e da Ásia, recém-emancipados ou em vias de atingir a independência, que ficou consolidada a ideia de um “Primeiro Mundo”, caracterizado pelos países capitalistas que seguiam os EUA; um “Segundo Mundo”, o dos socialistas que seguiam a União Soviética; e o “Terceiro Mundo”, dos países em desenvolvimento, incluindo os que estavam naquela conferência, que tentavam se descolar do assédio militar que EUA e União Soviética aplicavam naquele momento. Eram as primeiras notas da sinfonia do que ficaria conhecido como “Guerra Fria”.
“Fortunate Son” se refere a um momento em específico desse embate, que permaneceu por algum tempo apenas no âmbito da ideologia[1] e da espionagem, mas que, a partir dos anos 1960 conheceu uma sequência de conflitos militares como é o caso da Guerra do Vietnã. A canção fala justamente sobre obedecer às ordens das autoridades e usar as cores da bandeira norte-americana enquanto te apontam canhões. Assim, a banda estabelece uma crítica às convocações forçadas feitas para que jovens lutassem, e muitas vezes morressem em campos de batalha como o do Vietnã, em que os EUA tentavam frear a consolidação de uma influência soviética.
Entretanto, as batidas ritmadas e os elementos dançantes surgiram antes da Guerra Fria ficar quente. O rock enquanto gênero musical surge da união do blues, country e gospel, sintetizando uma cultura de rebeldia e juventude que mais tarde tornou-se extremamente politizada. Não é à toa que até o final dos anos 60 na União Soviética, o Rock era proibido por conta do medo de jovens serem atraídos para ramos da política e contestarem o governo vigente.
Já nos EUA, filmes como “Rock Around the Clock”, de 1955, consolidaram esse sentimento que vinha da música, quando jovens que estavam nos cinemas dançavam ao som das canções quebrando até mesmo as poltronas onde deveriam estar sentados. Seria com esse espírito de “juventude transviada”[2] que o rock se desenvolveria enquanto espaço de mensagem de insatisfação em relação ao governo americano e música da celebração da liberdade. Acompanhado disso, vinha também um estilo de se vestir que marcava o nascimento da Cultura Jovem, o topete masculino, as mini saias femininas e, acima de tudo, o jeans para todos os gêneros, um verdadeiro símbolo da moda de resistência por conta da sua durabilidade e versatilidade.
Dessa forma, estabelecia-se o que será conhecido nos anos 60 como o Movimento da Contracultura: jovens contestando e negando a cultura vigente através do movimento hippie e inúmeras manifestações sociais de luta pelos direitos civis minoritários, tudo isso com o rock ao fundo explodindo nas caixas de som. Em 1969, o festival musical de Woodstock que aconteceu em Bethel, no estado de Nova Iorque, canonizou-se como o maior símbolo do movimento da Contracultura, anunciado como “Uma Exposição Aquariana: 3 dias de paz e música” com uma série de icônicos shows de rock. O famoso evento hippie contou oficialmente com 400 mil pessoas e a participação de bandas e artistas como The Who, Jefferson Airplane, Sly & The Family Stone, Santana, Grateful Dead, Creedence Clearwater Revival, Janis Joplin & The Kozmic Blues Band e Jimi Hendrix.
Durante a célebre performance de Hendrix, o guitarrista interpretou o hino nacional norte-americano, o “Star Spangled Banner”, para procurar evocar ataques aéreos e as explosões dos bombardeamentos de napalm, numa alusão e crítica ferrenha ao conflito da Guerra do Vietnã. Além disso, o uso de drogas, principalmente o LSD, marcaram tanto o festival como os anos 60 como a droga que liberta a arruinada sociedade norte-americana e abre as “portas da percepção”, teoria do autor Aldous Huxley na obra “Portas da Percepção” de 1954 e que inspirou o nome da banda The Doors.
No fim, caminhando de mãos dadas com a Contracultura, o rock vive o seu momento de auge em meio à guerra em conjunto com um público de ouvintes jovens que estão interessados em “fazer amor e não guerra”, ditado do movimento hippie. Uma juventude politizada, rebelde e cansada da cultura vigente, que impõe-se e reivindica a liberdade do corpo, a liberação pessoal, a sexualidade, a realização dos desejos e, acima de tudo, a reparação histórica. Agora, mais do que nunca, o corpo em união com a música solidificam-se como política.
[1] A Guerra Fria marcou o embate do socialismo com o capitalismo. Até os conflitos armados, essa guerra estava no âmbito do embate de ideias e projetos culturais, por isso era chamada de “fria”, nunca ia às vias de fato.
[2] “Juventude Transviada” ou “Rebel Without a Cause” é um filme americano de 1955 que tem o ícone da cultura rock, James Dean, como ator principal. A expressão “juventude transviada” passou a significar aquilo que o filme disseminava, a rebeldia.
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